“Biografia do Abismo”, escrito em parceria pelo cientista
político Felipe Nunes e o jornalista Thomas Traumann, e lançado no mês de
dezembro de 2023, concorre, certamente, ao título de melhor livro dos últimos anos quando
o assunto é tentar entender o Brasil de hoje.
O Brasil das narrativas e fake news, do descrédito da imprensa para milhões, do desejo de eliminação do inimigo ideológico, de Lula e Bolsonaro. Do “Lulanaro”, tal qual descrito no livro que tenta explicar como chegamos até aqui.
Aqui, quando, - quem diria?, os petistas, seus filiados, militantes e simpatizantes têm na antiga e odiada inimiga, a Rede Globo, sua principal fonte de informação e justificativa quando o assunto é a “narrativa” que assume. Que no jornalismo sério - ainda que com lado - chama-se fato, notícia.
O Brasil de 2024 onde, após um ano e sete meses de sangria em horário nobre e grande parte do noticiário, em razão de escândalos do seu governo, do 08 de janeiro de 2023, das revelações sobre tentativa e minuta de golpe e, apesar de tudo, Bolsonaro possuir praticamente os mesmos índices de intenção de votos que alcançou no 2º turno de 2022, algo em torno de apenas dois milhões a menos que Lula, quase o número de eleitores do Distrito Federal naquela eleição.
Em sua parte introdutória, o livro faz uma analogia a partir da célebre sátira de Edmar Bacha, um dos criadores do Plano Real, e a Belíndia, país imaginário no caminho entre o Ocidente e o Oriente que cobrava impostos de uma nação pequena e rica como a Bélgica, e entregava serviços de país pobre como a Índia da época (1974), imensa em sua pobreza e área territorial como o Brasil.
País partido
Como diz o livro, cinquenta anos depois da alegoria que satirizava o “milagre econômico”
concentrador de riqueza, “que serviu para definir a dicotomia de um país
profundamente injusto", o Brasil é menos desigual, a estatística oficial é mais
confiável e a Índia não é mais pobre. Todavia, o país do “Lulanaro”
encontra-se novamente na encruzilhada de estar partido ao meio entre lulistas e
bolsonaristas.
Os autores deixam claro que os adjetivos são empregados como sinônimos de eleitores dos dois candidatos de maior expressividade em 2022, e não como afiliados a um movimento político solidificado.
2022 e a polarização extrema
Para Traumann e Nunes, na eleição brasileira mais disputada da história, a
de 2022, o Brasil viveu a consolidação de um processo de polarização extrema. Após fazerem um panorama das eleições
entre 1994 e 2014, no tempo do “nós (PT) contra eles (PSDB)”, os autores lembram que, no período, apesar de todos os golpes baixos, não se pregava a eliminação do adversário, da
existência do outro.
Lava Jato e antipetismo
A reeleição da catastrófica Dilma Rousseff e a candidatura
de Fernando Haddad em 2018 mostraram uma “estabilidade consistente na votação
do PT em vários estados brasileiros”, destaca o livro.
Após a solidificação dessa base eleitoral, cresce o fenômeno antipetista, que rejeita o partido de Lula. Na esteira do sentimento, a criminalização da política decorrente da Operação Lava Jato acentuou a divisão entre os dois grupos.
Daí explode e fragmenta-se o centro político e nasce o candidato anti-sistema vencedor de 2018: Jair Bolsonaro. Com ele, o radicalismo político migrou para o cotidiano. “A posição política passou a ser parte da identidade de cada um e o seu diferencial em relação ao outro”, afirmam.
Calcificação
O Dicionário Oxford Languages informa que "calcificar" é um verbo
transitivo direto e pronominal que significa “produzir ou sofrer
calcificação; tornar(-se) rígido por acúmulo de sais de cálcio”.
Como origem da substituição do termo polarização por calcificação, os autores citam a obra The Bitter End, sobre a eleição de 2020 entre Trump e Biden, dos americanos John Sides, Chris Tausanovitch e Lynn Vavreck.
Segundo os cientistas políticos americanos, as opiniões políticas passaram por um processo de engessamento e se transformaram em parte da identidade de cada eleitor.
A beligerância que passou a habitar no Brasil entre lulistas e bolsonaristas tem como consequências uma pressão maior sobre o Congresso Nacional, desconfiança elevada em relação ao STF, a mídia é contestada e corporações têm dificuldade de posicionar suas marcas. “O Brasil de opiniões radicalizadas é um dilema para todos os brasileiros”, escrevem.
Populismo
A onda da polarização e as
bolhas criadas por ela são fenômenos com origem naquilo que está sendo
classificado pelo Ocidente como “populismo mundial”, conceito que entende o
antagonismo político como confronto entre o bem (o povo) e o mal (as elites).
Com o fenômeno, o debate gira em torno de questões morais em detrimento de plataformas e propostas políticas. Exemplos ocorrem em razão do nacionalismo hindu na Índia, no combate ao tráfico de drogas nas Filipinas, nas políticas antimigratórias na Europa ocidental, em candidaturas antissistema no Chile, Argentina e no “nativismo” do “Faça a América Grande de Novo” de Donald Trump.
No Brasil do Bolsonaro x Lula de 2022, ficou calcificado o mecanismo de escolha em que “interesses perderam força para as paixões". Mais do que uma escolha racional, a disputa “foi entre duas visões de mundo, dois países diferentes entre si”, atestam os autores.
Moral da história: não importa o que ambos falem, eles sempre terão o apoio dos seus simpatizantes e a oposição dos contrários.
Panorama geral
Em linguagem direta como um
comentário de Felipe Nunes há alguns anos no Manhattan Connection ou, mais
recentemente, no Canal GloboNews, o
livro traça um panorama sobre as eleições no Brasil, faz comparações entre
governos e votações petistas e o período Bolsonaro, aponta áreas em disputa como o Sudeste, e esmiúça os efeitos da calcificação.
Transbordo e as identidades políticas
A rixa política tem implicado em escolhas como o colégio dos
filhos, bares e restaurantes que podem ser frequentados; com que membros da
família se relacionar, quais marcas consumir ou canais de TV assistir. Ou seja,
tudo passa pelo crivo da identidade política.
Empate técnico e intolerância
Uma pesquisa coordenada por Nunes, em setembro de 2023,
perguntou se a eleição fosse naquele momento entre Lula e Bolsonaro, qual seria
o voto do entrevistado. O placar foi 53%
Lula e 47% Bolsonaro. Com margem de erro de 2 pontos percentuais, deu empate
técnico. “Quase uma réplica do resultado em votos válidos de 2022”, diz.
Com a calcificação, cresceu a intolerância e o boicote a marcas e produtos caso empresas se manifestem sobre temas relacionados, sobretudo, a questões sociais e minorias. “Celebridades e artistas também se veem às voltas com boicotes e cancelamentos nas redes sociais em função de suas falas e seus posicionamentos sobre o Brasil", confirma o livro.
Dados
Entre 2021 e 2022, a Quaest foi contratada pela Genial
Investimentos para a “mais longa série de pesquisas presenciais e domiciliares
sobre comportamento eleitoral dos brasileiros”.
Foram realizadas cerca de 99 mil entrevistas, sendo 27 rodadas de pesquisas nacionais, sete em São Paulo, sete no Rio de Janeiro, dez em Minas Gerais e três na Bahia. Também foram coordenados 150 grupos de discussão ao longo da campanha presidencial. O estudo considerado o maior banco de dados sobre as escolhas, paixões, ódios, medos e esperança dos brasileiros é a base do livro.
Bolhificação e liberais sociais
A obra fala ainda em bolhificação, quando brasileiros passam a ter contato
só com quem pensa como eles.
Segundo os autores, a mineração dos dados da campanha de 2022 mostrou a importância decisiva de um grupo minoritário formado pelos liberais sociais, cerca de 3% do eleitorado, que migrou de Simone Tebet e de economistas liberais que apoiaram o PT, para Lula, dando-lhe a vitória.
Saídas
A parte final do livro, no capítulo 06, os autores questionam se
há saída, apontando como lição a aceitação da calcificação como um dado da realidade. Há ainda o destaque para a distinção entre as
responsabilidades dos agentes públicos e de outros atores.
No caso dos políticos, magistrados e jornalistas, a responsabilidade política deve ser tentar, ao menos, atenuar os efeitos da polarização afetiva, ao passo que o compromisso individual dos cidadãos, aprender a conviver com as diferenças.
08 de janeiro
“É preciso identificar as convergências capazes de costurar o tecido social. Os
ataques de 8 de janeiro cruzaram essa marca civilizatória”, propõem os autores.
A conclusão deste “livraço”, como diria o veterano jornalista e bibliófilo Elio Gaspari, registra passagem de um ensaio de George Orwell, traça um paralelo do seu título com trecho de Além do Bem e do Mal, de Friedrich Nietzsche, e o corolário de uma peça, Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre.
Com efeito, seu texto aponta o 08 de janeiro de 2023 como divisor de águas para a delimitação de até onde a polarização e a calcificação dela advinda podem ir.
Há complexidade e consequências no âmbito dessa calcificação, cujos prejuízos podem se dar no futuro, nas vidas pessoais e nos negócios de cada um, contribuindo para estagnação e atraso socioeconômico do país.
É desse futuro que trata a parte final do livro.
Autores
Felipe Nunes - fala mansa, objetiva, de fácil compreensão, ele passou a ser uma cara nova e rotineira nas TVs fechadas e abertas de 2019 para cá. O mineiro é Ph.D. em Ciência Política e Mestre em Estatística pela Universidade da Califórnia.
Sócio da Quaest, empresa que representou um sopro no universo das pesquisas de opinião desde que suas sondagens e metodologia passaram a ser divulgadas pelas empresas de notícia, é professor da UFMG, especialista em monitoramento de redes e inventor do “Índice de Popularidade Digital”.
Thomas Traumann
Jornalista com passagens pelos principais veículos impressos no Brasil, foi
porta-voz e ministro da Comunicação do governo Dilma Rousseff entre 2011 e
2014. Autor de um livro e coautor de outro, atualmente, é colunista de Veja e do site Poder360.
PS: E agora, Xandão?