Com The Crown, Netflix produz obra-prima das séries de cinema

07/01/2024 11:44
Com The Crown, Netflix produz obra-prima das séries de cinema

"Cinema é a primeira cena, a primeira imagem,
mágica, a tecnologia de nos fazer ver imagens artificialmente
 e que no entanto nos parecem reais é tão milagrosa
 como a multiplicação dos pães e peixes"
Paulo Francis


Emoção a toda prova. Assim também podemos definir os capítulos finais da série sobre a família real britânica no período da rainha Elizabeth II.

A temporada final, encerrada no último dia 14 de dezembro e, desde então, disponível no catálogo acessível aos assinantes da sua realizadora, a produtora Netflix, oferece o mesmo entretenimento de alta qualidade e apresenta o talento associado de produtores, diretores e atores durante todas as seis temporadas, ao longo de sete anos, com uma pandemia no meio.

Os dez episódios da última temporada seguiram contando as mais de sete décadas em que a rainha Elizabeth II reinou absoluta mundo afora no quesito centro das atenções, desde que ascendeu ao trono contando apenas 25 anos, após a morte do seu pai, o rei George VI.

Todos conhecem a história de abnegação dele, após a abdicação mega traumática para o Reino Unido em geral e a casa real britânica, particularmente, do herdeiro natural, o rei Edward VII, tornado duque de Windsor em seu exílio dourado francês.

O mesmo George VI que recusou o convite do então primeiro-ministro Winston Churchill, durante e após a Batalha da Inglaterra, para que deixasse Londres com a família para longe dos bombardeios da Luftwaffe de Adolf Hitler e Hermann Göring, nos anos 1940, durante a II Guerra Mundial.

The Crown, "A Coroa", reproduz suas fundamentadas e, aqui e acolá, contestadas versões que vão do casamento real da princesa, as lamentações do pai pela escolha do noivo, sua ascensão, a rica convivência com o mito de Churchill, o primeiro dos quinze "prime ministers" com os quais viria a despachar semanalmente por mais de 70 anos, até a melancolia que a afetou com a chegada da oitava década de vida e sexta de reinado, retratadas na série a partir das reuniões sobre as comemorações pelos seus 80 anos de nascimento e a organização prévia do próprio funeral.

Crises, diplomacia, reinvenção e Diana

Quando tornou-se rainha, Elizabeth II era a chefe de estado de trinta e dois estados independentes. Mulher mais fotografada, rica e poderosa ocidente afora, ao sair de cena com 96 anos e 70 de reinado, ainda era a chefe de quatorze deles, incluídos o Canadá e a Austrália.

A jovem herdara o trono de uma antiga potência mundial arruinada pela guerra. Como não podia ser diferente, enfrentou dilemas pessoais e políticos internos e externos e uma infinidade de problemas e questões alheias a sua vontade e/ou inerentes ao posto.

Em meio a crises geradas pela Guerra Fria, disputas continentais geopolíticas, criação de uma União Europeia - quase sempre em discussão -, stalinismo, Cortina de Ferro, guerras circunstânciais, problemas familiares e todas as demais questões inerentes que o correr do tempo, poder, existência, tornam inevitáveis, sempre surgia uma Elizabeth onisciente e discretíssima em suas manifestações e perene compostura à altura das expectativas que a jovem Lilibeth sempre se deparou.

A rainha conviveu com escândalos matrimoniais, filhos infiéis, divórcios, mal feitos, crises de imagem e de ciúmes, seja da "Dama de Ferro", Margareth Thatcher, ou, ainda mais, da bela e carismática princesa de Gales, Diana.

O que levou os produtores da série a encerrá-la por volta de 2007, reproduzindo cenas de "diálogos existenciais" entre as três atrizes que personificaram a personagem durante momentos de dúvidas e tomadas de decisões, motivadas pela autorização que dera ao casamento de Charles e Camila, e especulações em torno de uma abdicação em favor do sexagenário herdeiro, ainda não se sabe para além dos comunicados oficias sobre o encerramento, mas nada afetou todo o trabalho de fôlego e apuro imprimido da pré-produção ao pós-encerramento. 

Último lance e emoção como ponto forte

Se a série inicia com a presença do Churchill consagrado e cenas grandiloquentes, o final é indubitavelmente marcado pela emoção.

O que vem a seguir tem como spoiler a sequência que trata do envolvimento de Diana com a família Fayed e o final trágico da sua vida épica.

Nessa fase, a atuação do ator que interpreta o príncipe William beira uma caricatura muito distante da imagem que a criança sempre passou nas fotos oficiais ou feitas pelos paparazzi.

Com a fatalidade de Paris, em 31 de agosto de 1997, há a transição para o "novo William", muito mais parecido fisicamente com o herdeiro.

A partir daí são apresentadas sua revolta inicial com o pai, o ódio aos jornalistas e o horror a exposição pública que o adolescente adquire após a trágica morte da mãe.

A tristeza avassaladora pela perda de uma mãe apaixonada segue anos após a sua morte, diminuindo apenas com o passar do tempo, a entrada na faculdade e os prazeres que a vida e a juventude lhe proporcionam.

Sempre com vistas a aflorar a emoção dos espectadores, as cenas dos capítulos finais mostram a entrada ao palco real da nova princesa do povo, Kate Middleton, a escolhida por ele entre as milhões de garotas que sonhavam em ser desposadas pelo membro real que herdara a beleza e o carisma da mãe, e foi o alvo  da "Williamania".  

Impecável do início ao fim

Se entre os desafios dos criadores de "The Crown" estava investir em textos diretos e inteligíveis, fino acabamento em roteirização, felizes caracterizações, exposição de dramas, reconstituições que davam quase veracidade às cenas e o alcance permanente da alta qualidade que o enredo de uma produção impecável exigia, palmas para a plataforma de streaming que conseguiu atingir todos os objetivos. 

Para quem curte a sétima arte e chora a chegada de enlatados e altas produções capazes de esvaziar salas de cinema, a série se une a Os Sopranos, Seinfeld, House of Cards, The Americans e tantas outras, e entrega alta qualidade técnica de uma seleção na frente e por trás das câmeras. Um deleite. Uma obra-prima.



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