Por Paulo Silber
Conheci Tina Turner no Rampa. Uma boate gay na Alcindo Cacela. Na época, boate gay era boate gay. Nem tinham inventado, ainda, a expressão GLS.
Recriada agora com o acrônimo LGBTQI+. Muito mais abrangente, e com razão, numa sociedade excludente e violenta, em que é preciso agrupar para se proteger.
Aquele perímetro da Alcindo Cacela, onde se misturavam os rabichos da Cremação e os caprichos da Condor, bairros notórios da velha boemia, era uma espécie de cluster do bas-fond belenense. Se me permitem o exagero: a Amsterdã do trópico úmido; a Palm Springs da Amazônia Atlântica.
Tinha jogo, prostituição, pubs descolados, bares de última frequentados por gente de penúltima, inferninhos, drogas, boates gays, motéis, turistas, bon-vivants, artistas, voyeurs e nonchalances.
Um circuito de alegria. Um tanto quanto arriscado, mas muito divertido. Eu andava por ali, discretamente assíduo e ligeiramente reconhecido. Toda sexta, saía do trabalho por volta das 3 da manhã e ia pra lá, bater meu ponto no Clube da Música. Dos bares, o melhor.
Foi lá que encontrei Tina Turner pela segunda vez.
No Rampa, eu a vi montada, incorporada no personagem, esmerada na coreografia, precisa na dublagem e absolutamente radiante. Eu era jurado de um concurso no melhor estilo Clóvis Bornay e ela me encantou - e ganhou meu voto.
No Clube da Música, eu a vi despintada, despida da personagem, conversadora de mão cheia, mas precisando de ajuda:
- Me leva até São Brás pra eu pegar o ônibus? – pediu.
- Claro que não. Levo você na sua casa.
- Mas é em Marituba...
- Eu choro!
Nos 20 minutos entre a Condor e a Rua da Cerâmica, ouvimos Marley, Dina Washington, Tim Maia, Pink Floyd, Djavan, Beto Guedes, Belchior. Minha playlist miscelânica, cujas letras eu quase sei de cor. Falamos bobagens, compartilhamos histórias, contamos mentiras e não desejamos mal a quase ninguém. Conheci melhor a Tina Turner e me emocionei com as batalhas do Pedrinho, nascido e crescido numa tapera com sentina, jirau, parede de barro e lamparina.
Naquele mesmo corpo franzino, a diva era um farol, o jovem o faroleiro. O jardim e o jardineiro. Um só brilhava se outro sobrevivesse. E não era fácil, para um cara paupérrimo e sem acesso, sobreviver ao rolo compressor da hipocrisia, do racismo, da homofobia e da perversa desigualdade que consome as pessoas como se fossem papel de seda dissolvido no telhado.
Pedrinho, a Tina Turner do Rampa, foi embora em 2020, em meio ao horror e à iniquidade da pandemia, o genocídio brasileiro.
Dois dias depois daquela carona, anos antes, voltei ao Clube da Música:
- Nem te conto. Tem uma pessoa apaixonada por ti! – me disse a Suely, dona do bar.
- Quem seria capaz de uma loucura dessas? – eu brinquei.
- A Tina Turner!!!
Depois ela me contou que Tina ligara pra ela se dizendo apaixonada.
- Nossa! O que foi que rolou? Me conta tudo, amiga!
- A gente não se pegou. Mas ele fez uma coisa que nunca ninguém tinha feito! Nunca!
- O quêeee?
- Ele me chamou de você...
Quando li sobre a morte da Tina Turner real, ontem, lembrei da Tina Turner do Rampa, que me encantou, e do Pedrinho que me emocionou.
A Tina real, vítima de abuso físico, mental e sexual desde os 17 anos, dentro da própria casa, um dia deu a volta por cima, virou sex simbol depois dos 40, arrebatou uma multidão de fãs que, como eu, perderam a vergonha de dançar solto ou de rosto colado, na festinha ou no cinema.
Parodiando a Tina real, me deu vontade de dizer à minha Tina do Rampa, meu querido Pedrinho de Marituba: eu não queria perder você, cara. Nem que fosse pra acariciá-lo com o pronome de tratamento que o deixou tão feliz. Nem que fosse pra continuar chamando-o de você, pra sempre, um milésimo do respeito que as pessoas deveriam ter pelas outras.
Quando a Tina chegar aí onde você está, dá um abraço forte nela. Põe aquele tubinho dourado, solta a voz rouquinha e manda o mundo tomar no cu.
Faça o que você sabe fazer: encante.
Publicada originalmente em 26/05/2023
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