H.L. Mencken e o golpe do carnaval no Brasil

Jornalista e polemista americano, seu nome foi epítome de poder, inteligência, independência, erudição e sátira há 100 anos nos EUA.

11/02/2024 13:05
H.L. Mencken e o golpe do carnaval no Brasil

Faz um tempo que tento escrever algo sobre o excepcional livro "As ideias conservadoras", do português João Pereira Coutinho, publicado pela editora Três Estrelas, em 2014. Não vai ser dessa vez, como o próprio título desta coluna de carnaval indica.

Não, a razão para mais um adiamento, não se trata pelo fato da orelha da edição a qual me refiro ter sido escrita à época pelo neolulista, o macunaímico Reinaldo Azevedo, quase uma infâmia, dado ao tema da obra e reputação até hoje irreparável do seu autor.

O motivo é o "gancho", no jargão jornalístico, que as revelações da Operação Tempus Veritatis - "hora da verdade" em latim, nos remetem a pensar sobre a triste sina "deste país" do carnaval, da impunidade perene que o corrói, da sua histórica e recorrente desimportância e irrelevância política e estratégica no mundo que presta.

Um país "deitado eternamente em berço nada esplêndido", a não ser para os filhos da sua classe dirigente, entre os quais alguns líderes ultrapassados e delinquentes que lhe legam vexames, omissões e apoios infames nos fóruns de liderança e poder da vida global.

Não satisfeito com as últimas decisões pra lá de polêmicas do ministro Dias Toffoli, novo algoz de uma instituição que o próprio partido do presidente brasileiro usava dados e relatórios a torto e a direita para criticar, demonizar ou atacar o governo anterior e qualquer outro que lhe faça crítica ou oposição, a Transparência Internacional, o Brasil amanheceu na última quinta-feira, 08, acompanhando a operação da Polícia Federal cujos alvos eram o ex-presidente Jair Bolsonaro, militares de alta patente, quatro ex-ministros e ex-assessores do seu governo.

A justificativa para a autorização da ação pelo ministro do STF, Alexandre de Moraes, com o aval do procurador-Geral da República, Paulo Gonet, foi a tentativa de instalação de um golpe de Estado no Brasil, após o resultado da eleição presidencial de 2022, oportunidade em que foram cumpridos quatro mandados de prisão preventiva e trinta e três de busca e apreensão, em nove estados e na capital, Brasilia.

Corta para Baltimore, Maryland, EUA, cem anos atrás.

Henry Louis Mencken (1880-1956)

Imagine um jornalista de província que, da sua trincheira, no caso uma coluna do Evening Sun, de Baltimore, e cujos artigos, temas e opiniões ultrapassaram as fronteiras locais se tornando o mais importante, famoso e influente em seu tempo do país.

O que fez dele também o mais temido, respeitado, odiado, amado ou admirado em mesma escala por magnatas, escritores, religiosos, políticos e demais integrantes da classe dirigente norte americana.

Caso lhe encontrássemos similar ou algum paralelo nos dias de hoje, cem anos depois, em terras brasileiras, me pego pensando, neste domingo de carnaval, sobre o que ele estaria escrevendo a respeito de Bolsonaros, Toffolis, Lulas e seus acólitos?, “nesta terra de capachos", como diria o Paulo Francis.

Ao Brasil que resta, falo de cidadãos que ainda se indignam e os jornalistas que não gravitam na órbita ou se curvam às figuras e partidos do ex e do atual presidente; que não se rendem, ainda que não consigam ter a mesma verve letal, cultura universal, coragem pessoal e importância institucional que um H. L. Mencken, e têm se enojado e empenhado em mostrar os esqueletos e absurdos que brotam semanalmente de ações e omissões nas três esferas do poder central, a esses bons brasileiros, dedicamos esta primeira e singela homenagem ao grande iconoclasta americano, imaginando-o comentando as "últimas de Brasília".

Mencken neles!

Ruy Castro e o Livro dos Insultos

O flamenguista, jornalista, crítico, intelectual, imortal da ABL, biógrafo, escritor, cronista, etc., Ruy Castro, traduziu uma seleção de textos do americano, publicada na coleção "Jornalismo Literário", da editora Companhia das Letras.

Com o título de “O Livro dos Insultos”, a coletânea contempla textos existenciais sobre os tipos e a vida do homem, seu lugar na natureza e meditação… Fala das mulheres, religião, moral, morte, governo, democracia, economia, psicologia, tempos modernos (há 100 anos); sobre a sua grande paixão, a música erudita; e ainda sobre literatura, "artes menores", bufonarias, entre outras elucubrações e constatações.

Dito isso, tomemos como exemplo da sua independência intelectual e autoridade moral, a partir das cenas dos últimos capítulos, o que o americano escreveu sobre:     

Governo

"Todo governo, em essência, é uma conspiração contra o homem superior: seu objetivo permanente é oprimi-lo e manietá-lo. (...) Uma das funções primárias de qualquer governo é organizar homens pela força. (...) Para o governo, qualquer ideia original é um perigo potencial, uma invasão das suas prerrogativas, e o homem mais perigoso é aquele capaz de pensar por si próprio, sem ligar pra tabus e superstições em voga (...)."

Governo ideal

"O governo ideal de qualquer homem dado à reflexão, de Aristóteles em diante, é aquele que deixe o indivíduo em paz - um governo que praticamente passe despercebido".

O iconoclasta conclui: "Esse ideal, acredito, se concretizará no mundo cerca de vinte ou trinta séculos depois de eu ter partido e assumido minhas funções públicas no inferno".

Democracia

"Um dos méritos da democracia é bastante óbvio: é talvez a mais charmosa forma de governo já criada pelo homem. O motivo não é difícil de descobrir. Ela se baseia em proposições palpavelmente falsas - e o que não é verdade, como todo mundo sabe, é imensamente mais fascinante e satisfatório para a maioria dos homens do que o que é verdadeiro (...)".

A partir daí, o velho Mencken, em 1926, naquilo que chamaria de "Últimas Palavras", ainda que tivesse escrito sua última coluna mais de 20 anos depois, desce o sarrafo, com sua fina ironia, no modelo de governo pontificado por líderes, segundo ele, que se valem de velhas falsas promessas, mas reconfortantes e certa aparência de verdade objetiva e demonstrável (...)".

Em uma frase, num raciocínio sobre a relação do homem com o estado, H.L. escreveu:

"A democracia é a arte e ciência de administrar o circo a partir da jaula dos macacos".

Psicologia, "a turba" e o 08 de janeiro

No capítulo em que trata deste tema, o livro organizado por Ruy Castro inclui uma definição para 'turba".

Para Mencken, citando Gustave Le Bon e seus discípulos, ao discutir a psicologia das multidões, eles "formularam a ideia de que o indivíduo, quando ombro a ombro com a multidão, desce um grau ou dois intelectualmente e tende a exibir as mesmas reações mentais e emocionais de pessoas que lhe são inferiores".

E continua…

"É assim que eles explicam a bem conhecida violência e imbecilidade das multidões. A turba, enquanto turba, chega a extremos de que seus membros, como indivíduos, nunca poderiam ser acusados. Sua inteligência média é mínima; mas é infecciosa, contagiante, quase simiesca. As multidões, bem trabalhadas por um esperto demagogo, acreditam em qualquer coisa e são capazes de tudo".

Sobre o tema, a peroração do polemista ainda vai longe…

Alguma semelhança com o comportamento de turbas à esquerda e à direita que seguem os líderes atuais no espectro político bananeiro?

Reler Mencken sempre constitui-se em aprendizado, gáudio, alto astral e inspiração. Escrever sobre o livro de João Pereira Coutinho citado nesta coluna também é fruto derivado dessa leitura.

O texto em espera, que não será resenha, pode aguardar "outros carnavais" entre os vexames e escândalos que ainda hão de ser produzidos ao longo do 2024 bissexto em curso.

Carnaval em ano eleitoral

Rima com folia, alegria, energia, euforia, economia e anestesia. A partir do seu day after, quarta-feira de cinzas, tudo no Brasil vira sinônimo de ressaca, sujeira, destruição, balbúrdia, quebradeira, agressão ao meio ambiente, poluição, pasmaceira e, pouco depois do começo do ano bananeiro até o seu crepúsculo, em 31 de dezembro, é ano eleitoral cuja disputa precede a outra eleição, a da sucessão presidencial.

PS: Aliás, H. L. Mencken foi sentenciado pelo The New York Times em 1926, "o mais poderoso cidadão privado na América hoje em dia", segundo Ruy Castro. O imortal também nos informa que o homenageado deste domingo cobriu todas as convenções presidenciais entre 1904 e 1948.

Feliz carnaval. 

Mais matérias Brasil