Vinte e sete anos esta manhã. Adeus ao melhor professor.

"Toni, Paulo Francis morreu". Paulo Francis para sempre (1930 - 1997).

Foto: Bob Wolfenson

04/02/2024 11:45
Vinte e sete anos esta manhã. Adeus ao melhor professor.

Querido Franz Paul Trannin da Matta Heilborn,

De julho pra cá, parando por aqui, não escrevi nada que fosse tão tocante pra mim, e olha que perdemos o Paulo André.

Pelo tamanho e a minha insignificância provincial, talvez poucos o leiam, mas, diferente de você, isso já não é importante há bastante tempo…

Completaram-se hoje vinte e sete anos da madrugada fria e amarga daquela terça-feira, 04 de fevereiro de 1997, data em que a indigitada das gentes atravessou a tua porta e te levou quando já era alvorada no inverno novaiorquino.

Descrente que eras, será que, ao menos a imagem da tua tão amada Irene sorriu pra ti quando a tua alma e espírito se depararam na eternidade?

Se sim, que maravilha seria contemplá-la, mãos estendidas te convidando para seres envolvido entre os braços, após mais de 50 anos da ausência física dela, talvez o maior amor da tua vida.

Penso que a assunção da imagem dela na tua frente "na hora do vamo ver", não encontraria paralelo mais afetuoso como aceitação do Senhor do outro lado para um ateu como tu.

Caso a resposta seja afirmativa, então ela provavelmente veio para ser a tua Beatriz nos círculos que se descortinariam dali em diante.

Aqui neste caos, foste o meu Virgílio.

E como tal, bastaram apenas alguns meses de leitura dos Diários, "twice a week", para que me guiasses até longe da escuridão que a falta de educação representava a este semi-letrado e a "feitura da luz" atrás da qual me encaminhei.

Dito isso, a tua "visitante" provocou o desencontro naquela que seria a minha vez de peregrinar até ti em Nova York, em nosso imaginário "encontro marcado" sonhado por mim, composto por entrevista, conversa fiada mínima e autógrafos nos meus exemplares dos teus livros.

Aliás, talvez por ter parado no tempo, só não tenho o "Opinião Pessoal", somadas aí as coletâneas e publicações respeitáveis a teu respeito.

Minha vez de peregrinar, porque rezava a lenda de que recebias a quem te procurasse com o mesmo objetivo meu, de maneira gentil e com a elegância que só os teus familiares, amigos íntimos e nós, leitores de tudo que dizias, sabíamos de que eras dotado.

Sim, "dizias", porque nos ensinavas a escrever como falávamos, razão do teu amor juvenil por gente como Leon Trótsky, de quem foste primeiro fã da leitura, pela destreza dele no manuseio com a língua escrita, por meio da qual te seduziu até a ideologia de que um dia também te libertarias. 

Ao tempo em que me mostraste - quase de graça -, o caminho, ou saída do obscurantismo ao qual a ignorância nos leva até a clarividência que a liberdade de pensar e agir oferece aos interessados na existência do universo, pelo conhecimento, por história e cultura, o ocidente e o mundo, afinal.

Daquele limbo em que tinha me metido até a aparição do meu Virgílio após quase duas décadas de um ensino formal inócuo, no meu caso pelo menos, minha mente foi aberta para Freud, trotskismo…

… Aberta para conhecer a tua conversão ideológica, o teu ateísmo; para entender que aquele coroa do Jornal da Globo tinha uma cultura enciclopédica e, talvez, o melhor de tudo, era um autodidata com imersões acadêmicas circunstanciais, como a juvenil em NY no curso sobre teatro de Eric Bentley.

Entrevista a qual compareceria na hora marcada e seria publicada em O Liberal, periódico que, àquela altura quase monopolizava a audiência da imprensa escrita em Belém, e fora a justificativa que me permitiria ir ter contigo.

Com mais de sete décadas hoje em dia, o jornal era um entre as dezenas de norte a sul que reproduzia às quintas e domingos a página inteira da célebre Diário da Corte.

Conversa durante a qual decerto te perguntaria se havia alguma perspectiva boa para o Brasil do final do século XX; te ouviria espinafrar o reeleito e recém re-empossado Bill Clinton; te questionaria sobre Rússia e outros inimigos externos; ouviria desceres o sarrafo no marasmo do governo FHC I, de quem te distanciavas para a direita e do qual eu era um pragmático defensor.

Perguntaria sobre tudo que fosse up to date pra ti em matéria de espetáculos, livros, cochichos recentes do grand monde, a entrevista com a linda Gisele e o sutiã da Linda Evangelista… Como vias teus desafetos naqueles dias, tipo Caetano Veloso; se tiveste um amor platônico pela jovem Tônia Carrero, porque se fosse um não correspondido, ela teria dito após a diatribe em que te meteste. E te arrependeste.

Quais livros viriam por aí, a tua aparente alegria em nos divertir nas edições dominicais do Manhattan Connection, meio ambiente; se existia algum legado efetivo da Eco 92, a decadência do RJ; se havia alguma chance de voltares pra lá…etc. etc. etc.

Mas, deep down, talvez a principal pergunta não fosse publicada, pois seria de que maneira, no dia em que quisesse ligar o foda-se, tipo o pequeno Winston o fizera desde criança, e mandasse o mundo às favas, fazendo dali em diante somente o que a minha caixola dissesse, deveria fazê-lo.

Sim, a tua coluna mítica, querido Paulo Francis, foi bússola, alfabetização, "formação superior e pós-graduação" na escola da liberdade de ser e pensar pra este um que te escreve novamente.

Aliás, falando em Belém, foi na tua época do Teatro do Estudante que a conheceste e onde te apresentaste.

Para quem não sabe, o diretor do grupo, Pascoal Carlos Magno, fora quem “batizara” de Paulo Francis o versátil ator Franz Paul, carioca da gema, filho de pai alemão.

Está tudo no “Afeto que se Encerra”, onde também deixaste escritas as tuas boas impressões sobre a minha cidade natal e o teu apreço pela culinária, frutas da região e estação.

Deves ter ouvido falar dela anos depois de teres estado aqui, por meio de teu grande amigo Mário Faustino, um dos quais homenageaste no “Trinta Anos Esta Noite…”, livro que tanto sucesso fez entre leitores, amigos e admiradores teus por todos os lados.

Voltando ao que te diria após a entrevista que prometi fazer ao dono do jornal antes de ir para NY, vou repetir mais uma vez, não sem antes falar da minha alegria e emoção ao confirmar a persona inesquecível que nos legaste, a partir das homenagens que as manhattazanas lideradas pelo sensacional Lucas Mendes estão fazendo desde dezembro pra ti, especialmente nos programas de janeiro, e que se encerram exatamente hoje, no inédito que vai ao ar no YouTube e outros canais pagos, a partir das 22h do nosso Rio de Janeiro, mais teu do que meu, não menos amado por mim.

Sim, Francis, tenho e li todos aqueles livros, as mesmíssimas edições que o teu amigo e irmão mais novo Lucas tem mostrado.

Sei que, dito exatamente por ti, fazias parte de um quinteto inexpugnável formado pelos três mais velhos, Jorge Zahar, Millôr e Ênio Silveira e o caçula Ivan Lessa. Ah, claro, obrigado pelo Pasquim, agradecimento que estendo a todos aí, do compadre do Caetano, Tarso de Castro, ao rubro-negro Henfil e, naturalmente, ao Millôr e ao Ivan.

O Lucas apareceu na tua vida quando chegaste, mofino, como se diz em Belém, em NY, nos 1970, foi teu amigo ao longo das duas décadas seguintes e te convidou pra aventura que foi a tua última grande paixão no crepúsculo da tua vida de titã, o Manhattan Connection, nome que detestaste de início.

Sentado num café ou restaurante, com o testemunho de alguém ou dos leitores que viessem a lê-la, afirmaria sem hesitar que:

Foste o melhor professor.

Muito mais do que me letrar e fazer querer conhecer e ler F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Bernard Shaw, Oscar Wilde, Marcel Proust, Gustave Flaubert, Stendhal, Evelyn Waugh, Arthur Koestler, Graham Greene, Gore Vidal, Virginia Woolf, Balzac, Tolstói, Dostoiévski, Philip Roth, T. S. Eliot, Ezra Pound e tanta gente boa que vou esquecer agora…

… Os brasileiros Machado de Assis, Raul Pompéia, Otto Lara Resende, Ferreira Gullar…

… Foi você quem me apresentou o Brasil "nu e cru", a sua classe dirigente e, ao lado de gente como o Bob e o Lacerda, quem escreveu e o interpretou da forma mais verossímil e honesta.

Somada a tua conversão ideológica, eram muitas as afinidades eletivas entre nós.

Roberto Campos, do qual acabei de falar, a quem tanto demonizaste, de quem te tornaste amigo e declaraste voto em 1994 é, até hoje, meu guru, ao lado do Lacerda, em matéria de problemas estruturais, economia e política por essas bandas.

Deves ter ficado sabendo que, quando "foste nessa", ele disse que invejava o teu conhecimento em música e ópera. Puta elogio.

Aliás, nesse particular, ele falou, bastante tocado, de ti e do amigo fraterno dele, Mário Henrique Simonsen, morto cinco dias depois de ti, ainda que dele já se esperasse o fim em razão do quadro do seu estado de saúde.

Oito dias após a partida do MHS, em 17 de fevereiro, o Brasil perdeu Darcy Ribeiro, que também já vinha dando sinais de finitude.

Moral da história: em menos de duas semanas, o Bananão (royalties pro Ivan) perdeu três dos seus melhores intérpretes, cada um na sua área. Logo, talvez a maior perda seguida em quase 500 anos após o seu descobrimento, que se completariam três anos depois, em 2000.

Os dois últimos, MHS e Darcy, com passagens admiráveis, prósperas e fecundas pelo serviço público, deixando marcas na economia, desenvolvimento, história e educação nacionais.

Tudo sob o olhar e crítica do senhor que ilustra a *foto publicada sem autorização feita pelo genial Bob Wolfenson para capa da coletânea da tua coluna, livro batizado de WAAAL… O Dicionário da Corte de Paulo Francis, organizado pelo saudoso jornalista Daniel Piza, morto aos 41 anos, em 2011.

Pouca gente sabe, mas foste tu e o Roberto Campos que levantaram a bola do Olavo de Carvalho, o tornando alvo de respeito e curiosidade de muita gente boa da época.

Premonição e Petrobras

Outro aliás: o prefácio que escreveste no WAAAL, mais ou menos na mesma época em que dizias estar "tecnicamente morto", é outra prova que pressentias o teu final próximo. Nele, em apenas onze "parágrafos autobiográficos", escreveste sobre o teu fim em três deles.

Confirmando a tese sobre a libertação por meio do conhecimento, registraste logo no quinto parágrafo que o grande momento da tua vida fora perceber as possibilidades da imaginação. "Foi como o macaco de 2001 ao descobrir o uso agressivo de uma ossada animal (...)".

Falaste ainda sobre a metáfora da caverna de Platão, uma espécie de "alfabetização intelectual" que seria "melhor que cinema", o entretenimento favorito da tua geração.

Denunciaste a roubalheira crônica da Petrossauro (royalties por Bob), cujo processo te causou, dizíamos, o esgotamento do teu coração.

Aquilo virou o "Petrolão", ápice ocorrido no governo petista, considerado o maior escândalo da corrupção mundial.

No mesmo prefácio autobiográfico, quando falaste da tua falta de medo da morte, a justificaste pela tua opção de não ter tido filhos, parafraseando o Brás Cubas, alter ego do Bruxo do Cosme Velho, que não deixou a ninguém o legado das suas misérias.

E é exatamente por isso, Mr. Heilborn, que tenho pavor dela, pois Deus me deu quatro, sendo uma com 10 anos e a menor, contando hoje apenas seis meses, ela que é mais uma bênção divina na minha vida, e a quem quero orientar sob a proteção de Deus, o máximo que conseguir até quando nunca se sabe…

"Toni, Paulo Francis morreu"

Na minha terça-feira, 04 de fevereiro de 1997, liguei de NY pra minha mãe, pois deixara meu casal mais velho, dos quais fui pai aos 19 e 20 anos, com 5 a 4 anos respectivamente àquela altura, aos cuidados dela e do meu pai, naquela que seria uma viagem de seis meses para melhorar o inglês e escrever sobre a experiência novaiorquina.

Antes que conseguisse perguntar pelas crianças, das quais a mãe estava pior do que eu de saudade, ela saiu falando sobre o teu infarto fulminante.

Sem mais delongas, três dias depois, vencendo a timidez e a tristeza, e após descobrir o local do velório na edição impressa de O Globo comprada na rua 46, passei cinco minutos lá. Era a despedida física da razão que me fizera escolher a cidade. Você.

Entrei ali pra te ver de óculos deitado dentro do caixão de duas portas, um terno provavelmente Brooks Brothers e aparentando ser um gigante como sempre o imaginei.

Vi a emoção e a tristeza pela tua partida nos olhos da doce viúva, a jornalista Sônia Nolasco. Vi o Lucas Mendes e o Caio Blinder sentados perto de ti e senti um vazio que poucas vezes me acometeu até hoje, mesmo nos momentos de depressão diagnosticada. Não tive condições sequer de lhes cumprimentar.

Sumi invisível, pensando nos óculos que ela te colocou caprichosamente. O artefato te impediu de seguir a carreira teatral - galãs e protagonistas não o usavam -, mas possibilitou a leitura de tudo que leste dos 14 aos 67 anos.

Fora você antes, ninguém escrevera melhor sobre si após aquele dia do que o Millôr e o Ivan. Ainda que todos, do Lucas ao Diogo Mainardi, te amem talvez tanto quanto e sejam tão bons no ofício.

Por falar nesse detalhe, podem os cretinos se jactar como quiserem, mas não apareceu ninguém melhor por essas bandas e lá se vão quase "trinta anos esta manhã"…

Como diz o Diogo, você foi o mais influente jornalista brasileiro do século XX. E também o melhor, o maioral.

Só mais uma coisa: toda vez em que me apequeno, que faço alguma shit ou gesto que o valha, sempre me imagino sendo observado por ti nesta foto da coluna, que roubei do Wolfenson.

Acho que ela representa um superego imaginário e seu olhar de cima pra baixo, de tutor de internato. You know what I mean

Como se despediria o velho Churchill,

Sempre seu e para sempre seu,

Toni Remigio, amigo unilateral (tese do Otto Lara Resende). Eternamente saudoso e grato.

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