Querido Franz Paul Trannin da Matta Heilborn,
De julho pra cá, parando por aqui, não escrevi nada que fosse tão tocante pra mim, e olha que perdemos o Paulo André.
Pelo tamanho e a minha insignificância provincial,
talvez poucos o leiam, mas, diferente de você, isso já não é importante há bastante tempo…
Completaram-se hoje vinte e sete anos da madrugada fria
e amarga daquela terça-feira, 04 de fevereiro de 1997, data em que a indigitada
das gentes atravessou a tua porta e te levou quando já era alvorada no inverno
novaiorquino.
Descrente que eras, será que, ao menos a imagem da tua
tão amada Irene sorriu pra ti quando a tua alma e espírito se depararam na
eternidade?
Se sim, que maravilha seria contemplá-la, mãos
estendidas te convidando para seres envolvido entre os braços, após mais de 50
anos da ausência física dela, talvez o maior amor da tua vida.
Penso que a assunção da imagem dela na tua frente
"na hora do vamo ver", não encontraria paralelo mais afetuoso como
aceitação do Senhor do outro lado para um ateu como tu.
Caso a resposta seja afirmativa, então ela
provavelmente veio para ser a tua Beatriz nos círculos que se descortinariam
dali em diante.
Aqui neste caos, foste o meu Virgílio.
E como tal, bastaram apenas alguns meses de leitura dos
Diários, "twice a week",
para que me guiasses até longe da escuridão que a falta de educação
representava a este semi-letrado e a "feitura da luz" atrás da qual
me encaminhei.
Dito isso, a tua "visitante" provocou o
desencontro naquela que seria a minha vez de peregrinar até ti em Nova York, em
nosso imaginário "encontro marcado" sonhado por mim, composto por
entrevista, conversa fiada mínima e autógrafos nos meus exemplares dos teus
livros.
Aliás, talvez por ter parado no tempo, só não tenho o
"Opinião Pessoal", somadas aí as coletâneas e publicações
respeitáveis a teu respeito.
Minha vez de peregrinar, porque rezava a lenda de que
recebias a quem te procurasse com o mesmo objetivo meu, de maneira gentil e com
a elegância que só os teus familiares, amigos íntimos e nós, leitores de tudo que
dizias, sabíamos de que eras dotado.
Sim, "dizias", porque nos ensinavas a
escrever como falávamos, razão do teu amor juvenil por gente como Leon Trótsky,
de quem foste primeiro fã da leitura, pela destreza dele no manuseio com a língua
escrita, por meio da qual te seduziu até a ideologia de que um dia também te
libertarias.
Ao tempo em que me mostraste - quase de graça -, o
caminho, ou saída do obscurantismo ao qual a ignorância nos leva até a
clarividência que a liberdade de pensar e agir oferece aos interessados na
existência do universo, pelo conhecimento, por história e cultura, o ocidente e
o mundo, afinal.
Daquele limbo em que tinha me metido até a aparição do
meu Virgílio após quase duas décadas de um ensino formal inócuo, no meu caso pelo menos, minha mente foi aberta para Freud, trotskismo…
… Aberta para conhecer a tua conversão ideológica, o teu
ateísmo; para entender que aquele coroa do Jornal da Globo tinha uma cultura
enciclopédica e, talvez, o melhor de tudo, era um autodidata com imersões
acadêmicas circunstanciais, como a juvenil em NY no curso sobre teatro de
Eric Bentley.
Entrevista a qual compareceria na hora marcada e seria
publicada em O Liberal, periódico
que, àquela altura quase monopolizava a audiência da imprensa escrita em Belém,
e fora a justificativa que me permitiria ir ter contigo.
Com mais de sete décadas hoje em dia, o jornal era um
entre as dezenas de norte a sul que reproduzia às quintas e domingos a
página inteira da célebre Diário da Corte.
Conversa durante a qual decerto te perguntaria se havia
alguma perspectiva boa para o Brasil do final do século XX; te ouviria
espinafrar o reeleito e recém re-empossado Bill Clinton; te questionaria sobre
Rússia e outros inimigos externos; ouviria desceres o sarrafo no marasmo do
governo FHC I, de quem te distanciavas para a direita e do qual eu era um
pragmático defensor.
Perguntaria sobre tudo que fosse up to date pra ti em matéria de espetáculos, livros, cochichos
recentes do grand monde, a entrevista
com a linda Gisele e o sutiã da Linda Evangelista… Como vias teus desafetos
naqueles dias, tipo Caetano Veloso; se tiveste um amor platônico pela jovem
Tônia Carrero, porque se fosse um não correspondido, ela teria dito após a diatribe em que te meteste. E te arrependeste.
Quais livros viriam por aí, a tua aparente alegria em
nos divertir nas edições dominicais do Manhattan Connection, meio ambiente; se
existia algum legado efetivo da Eco 92, a decadência do RJ; se havia alguma
chance de voltares pra lá…etc. etc. etc.
Mas, deep down,
talvez a principal pergunta não fosse publicada, pois seria de que maneira, no
dia em que quisesse ligar o foda-se, tipo o pequeno Winston o fizera desde
criança, e mandasse o mundo às favas, fazendo dali em diante somente o que a
minha caixola dissesse, deveria fazê-lo.
Sim, a tua coluna mítica, querido Paulo Francis, foi
bússola, alfabetização, "formação superior e pós-graduação" na escola
da liberdade de ser e pensar pra este um que te escreve novamente.
Aliás, falando em Belém, foi na tua época do Teatro do
Estudante que a conheceste e onde te apresentaste.
Para quem não sabe, o diretor do grupo, Pascoal Carlos
Magno, fora quem “batizara” de Paulo Francis o versátil ator Franz Paul,
carioca da gema, filho de pai alemão.
Está tudo no “Afeto que se Encerra”, onde também
deixaste escritas as tuas boas impressões sobre a minha cidade natal e o teu
apreço pela culinária, frutas da região e estação.
Deves ter ouvido falar dela anos depois de teres estado
aqui, por meio de teu grande amigo Mário Faustino, um dos quais homenageaste no
“Trinta Anos Esta Noite…”, livro que tanto sucesso fez entre leitores, amigos e
admiradores teus por todos os lados.
Voltando ao que te diria após a entrevista que prometi
fazer ao dono do jornal antes de ir para NY, vou repetir mais uma vez, não sem
antes falar da minha alegria e emoção ao confirmar a persona inesquecível que nos legaste, a partir das homenagens que as manhattazanas lideradas pelo sensacional
Lucas Mendes estão fazendo desde dezembro pra ti, especialmente nos programas
de janeiro, e que se encerram exatamente hoje, no inédito que vai ao ar no
YouTube e outros canais pagos, a partir das 22h do nosso Rio de Janeiro, mais
teu do que meu, não menos amado por mim.
Sim, Francis, tenho e li todos aqueles livros, as
mesmíssimas edições que o teu amigo e irmão mais novo Lucas tem mostrado.
Sei que, dito exatamente por ti, fazias parte de um
quinteto inexpugnável formado pelos três mais velhos, Jorge Zahar, Millôr e
Ênio Silveira e o caçula Ivan Lessa. Ah, claro, obrigado pelo Pasquim,
agradecimento que estendo a todos aí, do compadre do Caetano, Tarso de Castro,
ao rubro-negro Henfil e, naturalmente, ao Millôr e ao Ivan.
O Lucas apareceu na tua vida quando chegaste, mofino,
como se diz em Belém, em NY, nos 1970, foi teu amigo ao longo das duas décadas
seguintes e te convidou pra aventura que foi a tua última grande paixão no
crepúsculo da tua vida de titã, o Manhattan
Connection, nome que detestaste de início.
Sentado num café ou restaurante, com o testemunho de
alguém ou dos leitores que viessem a lê-la, afirmaria sem hesitar que:
Foste o melhor professor.
Muito mais do que me letrar e fazer querer conhecer
e ler F. Scott Fitzgerald, James Joyce, Bernard Shaw, Oscar Wilde, Marcel
Proust, Gustave Flaubert, Stendhal, Evelyn Waugh, Arthur Koestler, Graham
Greene, Gore Vidal, Virginia Woolf, Balzac, Tolstói, Dostoiévski, Philip Roth,
T. S. Eliot, Ezra Pound e tanta gente boa que vou esquecer agora…
… Os brasileiros Machado de Assis, Raul Pompéia, Otto
Lara Resende, Ferreira Gullar…
… Foi você quem me apresentou o Brasil "nu e
cru", a sua classe dirigente e, ao lado de gente como o Bob e o Lacerda,
quem escreveu e o interpretou da forma mais verossímil e honesta.
Somada a tua conversão ideológica, eram muitas as
afinidades eletivas entre nós.
Roberto Campos, do qual acabei de falar, a quem tanto
demonizaste, de quem te tornaste amigo e declaraste voto em 1994 é, até hoje,
meu guru, ao lado do Lacerda, em matéria de problemas estruturais, economia e
política por essas bandas.
Deves ter ficado sabendo que, quando "foste
nessa", ele disse que invejava o teu conhecimento em música e ópera. Puta
elogio.
Aliás, nesse particular, ele falou, bastante tocado, de
ti e do amigo fraterno dele, Mário Henrique Simonsen, morto cinco dias depois
de ti, ainda que dele já se esperasse o fim em razão do quadro do seu
estado de saúde.
Oito dias após a partida do MHS, em 17 de fevereiro, o
Brasil perdeu Darcy Ribeiro, que também já vinha dando sinais de finitude.
Moral da história: em menos de duas semanas, o Bananão
(royalties pro Ivan) perdeu três dos seus melhores intérpretes, cada um na sua
área. Logo, talvez a maior perda seguida em quase 500 anos após o seu
descobrimento, que se completariam três anos depois, em 2000.
Os dois últimos, MHS e Darcy, com passagens admiráveis,
prósperas e fecundas pelo serviço público, deixando marcas na economia,
desenvolvimento, história e educação nacionais.
Tudo sob o olhar e crítica do senhor que ilustra a
*foto publicada sem autorização feita pelo genial Bob Wolfenson para
capa da coletânea da tua coluna, livro batizado de WAAAL… O Dicionário da Corte de Paulo Francis, organizado pelo saudoso jornalista
Daniel Piza, morto aos 41 anos, em 2011.
Pouca gente sabe, mas foste tu e o Roberto Campos que
levantaram a bola do Olavo de Carvalho, o tornando alvo de respeito e
curiosidade de muita gente boa da época.
Premonição e Petrobras
Outro aliás: o prefácio que escreveste no WAAAL, mais ou menos na mesma época em que dizias estar "tecnicamente morto", é outra prova que pressentias o teu final próximo. Nele, em apenas onze "parágrafos autobiográficos", escreveste sobre o teu fim em três deles.
Confirmando a tese sobre a libertação por meio do conhecimento, registraste logo no quinto parágrafo que o grande momento da tua vida fora perceber as possibilidades da imaginação. "Foi como o macaco de 2001 ao descobrir o uso agressivo de uma ossada animal (...)".
Falaste ainda sobre a metáfora da caverna de Platão, uma espécie de "alfabetização intelectual" que seria "melhor que cinema", o entretenimento favorito da tua geração.
Denunciaste a roubalheira crônica da Petrossauro (royalties por Bob), cujo processo te causou, dizíamos, o esgotamento do teu coração.
Aquilo virou o "Petrolão", ápice ocorrido no governo petista, considerado o maior escândalo da corrupção mundial.
No mesmo prefácio autobiográfico, quando falaste da tua falta de medo da morte, a justificaste pela tua opção de não ter tido filhos, parafraseando o Brás Cubas, alter ego do Bruxo do Cosme Velho, que não deixou a ninguém o legado das suas misérias.
E é exatamente por isso, Mr. Heilborn, que tenho pavor dela, pois Deus me deu quatro, sendo uma com 10 anos e a menor, contando hoje apenas seis meses, ela que é mais uma bênção divina na minha vida, e a quem quero orientar sob a proteção de Deus, o máximo que conseguir até quando nunca se sabe…
"Toni, Paulo Francis morreu"
Na minha terça-feira, 04 de fevereiro de 1997, liguei de NY pra minha mãe, pois deixara meu casal mais velho, dos quais fui pai aos 19 e 20 anos, com 5 a 4 anos respectivamente àquela altura, aos cuidados dela e do meu pai, naquela que seria uma viagem de seis meses para melhorar o inglês e escrever sobre a experiência novaiorquina.
Antes que conseguisse perguntar pelas crianças, das quais a mãe estava pior do que eu de saudade, ela saiu falando sobre o teu infarto fulminante.
Sem mais delongas, três dias depois, vencendo a timidez e a tristeza, e após descobrir o local do velório na edição impressa de O Globo comprada na rua 46, passei cinco minutos lá. Era a despedida física da razão que me fizera escolher a cidade. Você.
Entrei ali pra te ver de óculos deitado dentro do caixão de duas portas, um terno provavelmente Brooks Brothers e aparentando ser um gigante como sempre o imaginei.
Vi a emoção e a tristeza pela tua partida nos olhos da doce viúva, a jornalista Sônia Nolasco. Vi o Lucas Mendes e o Caio Blinder sentados perto de ti e senti um vazio que poucas vezes me acometeu até hoje, mesmo nos momentos de depressão diagnosticada. Não tive condições sequer de lhes cumprimentar.
Sumi invisível, pensando nos óculos que ela te colocou caprichosamente. O artefato te impediu de seguir a carreira teatral - galãs e protagonistas não o usavam -, mas possibilitou a leitura de tudo que leste dos 14 aos 67 anos.
Fora você antes, ninguém escrevera melhor sobre si após aquele dia do que o Millôr e o Ivan. Ainda que todos, do Lucas ao Diogo Mainardi, te amem talvez tanto quanto e sejam tão bons no ofício.
Por falar nesse detalhe, podem os cretinos se jactar como quiserem, mas não apareceu ninguém melhor por essas bandas e lá se vão quase "trinta anos esta manhã"…
Como diz o Diogo, você foi o mais influente jornalista brasileiro do século XX. E também o melhor, o maioral.
Só mais uma coisa: toda vez em que me apequeno, que faço alguma shit ou gesto que o valha, sempre me imagino sendo observado por ti nesta foto da coluna, que roubei do Wolfenson.
Acho que ela representa um superego imaginário e seu olhar de cima pra baixo, de tutor de internato. You know what I mean…
Como se despediria o velho Churchill,
Sempre seu e para sempre seu,
Toni Remigio, amigo unilateral (tese do Otto Lara Resende). Eternamente saudoso e grato.