Henry Kissinger, o extra-classe e sua fama de mau

06/12/2023 12:15
Henry Kissinger, o extra-classe e sua fama de mau
Os negócios dos EUA são os negócios.
Calvin Coolidge - 30º presidente americano


Ele foi consagrado e mitificado por chefes de estado e governo durante sua atuação como braço direito dos presidentes Richard Nixon e Gerald Ford e após o "reinado" e prevalência das suas formulações que impactaram a vida de meio mundo. 

Em oposição maior ou similar, conseguiu ser odiado e demonizado por dezenas de adversários no sem número de contendas nas quais esgrimou todo o seu arsenal de artimanhas, convicções e estratégias por décadas.

Tamanho fora o seu protagonismo naquilo a que se propora executar ou defender em sua jornada profissional na viagem com final marcado da vida, que a sempre arrazoada, sóbria e serena Dorrit Harazim o classificara, em sua coluna de O Globo, edição de domingo, 03 de dezembro, como o "mais relevante estadista do século XX”. 

Em um século onde pontificaram um Winston Churchill e um Franklin Delano Roosevelt, que passara por duas guerras mundiais, o holocausto, polarização ideológica, uma "Guerra Fria" e tensões em regiões quase permanentes conflagradas como no caso do Oriente Médio, talvez a brilhante jornalista tenha se referido a categoria dos tecnocratas e scholars nomeados para servir ao seu país.  

Seu ponto máximo foi em 1972, quando promoveu o encontro entre Richard Nixon e Leonid Brejnev, sendo o artífice da “distensão” que evitaria uma aniquilação mútua entre os EUA e a então URSS. 

Por meio do SALT 1, os arsenais nucleares de ambos os países foram reduzidos e as tensões diminuíram até o fim do regime socialista soviético. 

Nixon e Mao

No ano seguinte, 1973, Kissinger também foi o responsável pela negociação que pôs fim às mais de duas décadas de hostilidades entre Washington e Pequim, para onde acompanhou em visita de estado o presidente reeleito consagradamente após vencer nos 50 estados no ano anterior, local em que se encontraria com o líder da “Revolução Cultural”, Mao Tsé-Tung.  

Interna e concomitantemente, a presidência de Richard Nixon ardia no mármore em que ele se imiscuiu do “Watergate”, escândalo responsável pela única renúncia presidencial em quase dois séculos da pujante democracia americana à época. 

Mas isso é outra história

Harvard, Napoleão e o nascimento da Realpolitik

Nascido bávaro alemão de família judia em 27 de maio de 1923, e naturalizado americano após fugir de Adolf Hitler, quinze anos depois, Henry Alfred Kissinger morreu aos 100 anos, na quarta-feira, 29 de novembro de 2023, após uma vida plenamente realizada. E polêmica.

O statesman Henry Kissinger, reconhecido até por seus adversários como dotado de inteligência e cultura privilegiadas, pode ter sido forjado ao longo de uma vida em que passara por privações causadas pela perseguição nazista, cujo corolário em relação a sua origem era chamado de "Solução Final". 

Contudo, suas ideias e estratégias que prevaleceriam no debate internacional enquanto teve poder nas duas *presidências as quais serviu como secretário de Estado (governos Nixon e Ford) e após, foram concebidas muito antes, e o levaram a ser o primeiro da turma em Harvard, de onde saiu com honras, PhD. 

À obra que o catapultara ao honorável título, Kissinger batizara de "O Mundo Restaurado". Ela refere-se ao Congresso de Viena, em 1815, quando o primeiro-ministro da Áustria-Hungria, Klemens Wenzel von Metternich, fora o anfitrião do congresso europeu que viria definir o novo mapa do continente ao final das guerras napoleônicas. 

O trabalho é inequívoco por revelar por trás do negociador de Nixon e Ford a sua face menos conhecida de scholar, estudioso da ciência política, historiador e teórico das relações internacionais. 

Transformado em livro, o estudo mostra as analogias de Kissinger, seu manejo a partir de um referencial teórico que o fez capaz de entender as doutrinas vigentes naquele período e expor as soluções encontradas após a derrota final do imperador francês.

A tese representou também meio que um prenúncio das formas embrionárias dos conflitos continentais que amadureceriam por cerca de um século, restando por culminar nas duas guerras mundiais que eclodiram na primeira metade do século seguinte, o XX. 

Com efeito, "O Mundo Restaurado" ajuda a compreender seu desempenho pessoal como mediador, que viria a ser responsável por negociar as condições do cessar-fogo num atoleiro chamado Vietnã, bem como a retórica que o fez atravessar mais de meio século como consultor de doze presidentes e outros tantos líderes mundiais na busca por uma paz permanente. 

Premissas essas que foram responsáveis por seduzir presidentes americanos e líderes mundiais de países dentro da esfera de influência do país - e até adversários ideológicos como Brejnev e Mao -, e viriam a fundamentar a doutrina conhecida por "Realpolitik".

Grosso modo, a sua Realpolitik nada mais era do que impor as decisões das grandes nações para o restante do mundo polarizado, com os interesses dos EUA sempre à frente, doesse a quem doesse.

Nobel da Paz, críticos, detratores e declarações polêmicas

Sua atuação no Vietnã lhe rendera o Prêmio Nobel da Paz de 1973, mesmo ano em que negociara outro cessar-fogo, desta feita no conflito árabe-israelense. 

Na outra ponta, morreu sendo acusado de apoiar ditaduras sul-americanas, com destaque para a chilena e a argentina.

Polêmicas e acusações não lhe faltaram por todos os lados de Santiago, Paris ou no Timor Leste; bem como a sua responsabilização por horrores e crimes de guerra praticados no próprio Vietnã, Laos e Camboja. 

Suas frases de efeito e tiradas de improviso também foram pródigas ao longo da atuação global. "O poder é o maior afrodisíaco" talvez seja a mais popular. 

Sobre a alegada "praticidade" da sua Realpolitik e a defesa intransigente dos interesses americanos, way of life e valores da sua sociedade, disse ele: "um país que exige perfeição moral em sua política externa não alcançará nem perfeição nem segurança". 

Para cólera e ódio eterno dos seus críticos, talvez a declaração mais polêmica delas tenha sido sobre o povo chileno em sua autodeterminação de ter eleito Salvador Allende. 

"Não vejo por que precisamos ficar parados vendo um país livre virar comunista devido à irresponsabilidade de seu povo. (...) As questões são importantes demais para deixar os eleitores chilenos decidirem por si mesmos". 

"Eu não desejo que Henry Kissinger descanse em paz. (...) Espero, ao contrário, que os fantasmas das multidões por ele desgraçadas atormentem sua memória e persigam sua biografia", disse o dramaturgo Ariel Dorfman. 

Autor do livro "O julgamento de Kissinger", após descobrir um câncer no esôfago, Christopher Hitchens lamentou não ter a chance de escrever o obituário do ex-secretário de Estado. O inglês morreu em 2010, aos 62, quando o americano contava 87 anos. 

Elio Gaspari, marido de Dorrit Harazim, classificou o obituário escrito pelo jornalista David Sanger para o The New York Times, como de "alta qualidade" e capaz de colocar cada pedra das acusações que pesam contra si no seu devido lugar, torcendo que alguém o traduza para o português. 

Campos, Kissinger e a China

Entre os brasileiros, não resta dúvida de que o economista, diplomata, ex-ministro e político Roberto Campos fora seu mais próximo amigo. Ambos dotados de inteligência e cultura muito acima da média, Kissinger revelou toda sua admiração pelo brasileiro quando da sua morte, em 2001.

Em declaração, com o habitual sarcasmo, o pai da Realpolitik disse invejar no brasileiro sua erudição, memória e de quem se acostumou a se apropriar como suas, muitas de suas tiradas e aforismos geniais.

Sua saída oficial de cena se deu após completar um século de vida, quando visitara - de surpresa - a China de Xi Jinping, que o recebera calorosamente sob as vistas da TV estatal chinesa, responsável por captar a frase do ditador dizendo: "estou muito feliz em vê-lo, senhor".    

"Nunca esqueceremos nossos velhos amigos e não esqueceremos suas contribuições históricas para desenvolver as relações EUA-China e a amizade entre os dois povos", também disse o chinês.

Judeu de origem bávara como o algoz de seu povo, Adolf Hitler, o Henry Kissinger naturalizado americano amava futebol, e sua seleção favorita era a do Brasil de 1982.

Como se vê, em matéria de gosto pelo antigo e violento esporte bretão, o genial anti-herói também sabia das coisas. 




*No primeiro governo Nixon ele foi assessor de Segurança Nacional.





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