TBTexto: O café da mamãe

Nosso cronista se joga no túnel do tempo pra descrever um momento inesquecível da infância: o café da manhã da grande família. Era minguado, mas tinha o melhor sabor: o amor da Dona Mena.

29/05/2025 18:20
TBTexto: O café da mamãe

Fui na padaria da esquina ainda agora e notei que já estão fazendo pão bisnaga. Também percebi que ninguém pede assim:

- Me dá um pão bisnaga e dois carecas.

Nunca. Aqui se diz:

- Me dá dois carecas e um daqueles compridinhos...

Bisnaga, cá pra nós, lembra remédio. E ainda assim é palavra restrita ao vocabulário médico. Ninguém vai numa farmácia e pergunta: 

- Quanto tá a bisnaga do acetato de dexametasona?

Nunca. Aqui se diz:

- Sabe aquela pomadinha? Acetato de não sei o quê? Aquela do tubinho azul?

Resolvido. Bisnaga é papo de consultório. N em de farmácia é. Muito menos de padaria.

O pão bisnaga é, na verdade, o mesmo pão careca, só que espichado. E a gente fala no diminutivo, compridinho, numa típica demonstração de afeto. Quem não gosta de pão quentinho? Ainda mais o compridinho, que vale por três carecas. 

Quer dizer: vale por três agora. Na minha infância, valia por quatro. Não que fosse maior. É que a mamãe comprava duas bisnagas e as multiplicava. Era o milagre da faca de pão, transformando dois tubos de trigo assado em oito bisnaguinhas, uma para cada membro da nossa grande família. 

A manteiga - naquela época era baratinha e a margarina não tinha o menor ibope - também ungia milagrosamente cada pedaço de pão. A mesma faca que espalhava na ida, retirava metade da manteiga na volta. Nunca se sabe o dia de amanhã...

Naquele ritual que reunia à mesa da cozinha a devotada e parcimoniosa mãe e seus sete filhos (depois viriam mais três: "crescei e multiplicai"), não chegávamos a presenciar a transformação de água em vinho, como nas bodas de Canaã. Mas juro por Deus: mamãe, além do pão, multiplicava o leite.

Vinha num saquinho branco, naquele tempo em que o leite em pó e o de caixinha não faziam sucesso. Era entregue às 6h em ponto pelo leiteiro, na porta de casa, e depois de fervido já tinha dobrado de volume: um litro virava dois, abençoado pela água que o tornava ralo, mas gostoso.

Pensando bem, nem sei se era gostoso. Tal como tudo, nas nossas refeições, o leite era servido a contagotas - e isso não é metáfora. Mamãe avocava a responsabilidade, como líder nata, e pingava pequenas medidas de leite em cada xícara, apenas o suficiente para clarear o café. E ai de quem não bebesse, gostando ou não. Em café da manhã de pobre, o menor desperdício era punido com ralho e cascudo:

- Bebe tudo!

Foi preciso eu crescer e escapulir da classe C pra descobrir que nem todo café da manhã era igual ao da minha infância, o café da mamãe. Infelizmente, pra muita gente, tem café pior. Quando tem.

Mas conheci também a fartura de um breakfast de hotel, a aventura de um coffe break apressado, a frescura dos cafés gourmetizados e a loucura, juro por Deus, a loucura de um café da manhã na casa do Frank Siqueira. Um amigo que partiu fora do combinado e fez da sua casa um consulado do modo de vida cearense.

Se em Portugal café da manhã é “pequeno almoço”, na casa do Frank Siqueira era um verdadeiro banquete. Acostumado ao meu queijo-quente com café preto, ovo mexido e abacatada, que já parece mesa farta, imagine como era o café da manhã do meu amigo cearense.

Anota aí: carne de sol desfiada, farofinha com moela, cuscuz, bolo de macaxeira com manteiga de garrafa, bolo de milho, batata doce, queijo coalho, grude de mandioca, tapioquinha, beju, farinha de tapioca, pamonha, suco de manga, cajuzinho cristalizado e, é claro, se você fizer questão, um cafezinho preto direto do bule. Garrafa térmica é para os fracos.

Nessa prosa sobre café, fico feliz em guardar na memória os dois extremos. A loucura do café da manhã na casa do Frank Siqueira e a doçura do café da mamãe na minha infância. 

Lembro que, naquela mesa, sempre faltava ele, o papai. Ou porque saía muito cedo pro quartel, ou porque vivia viajando. Mas era lei: dos quatro bicos de pão (dois de cada bisnaga), mamãe guardava o dela pro Velho Gama e o transformava em torrada pra, quando ele chegasse, molhar no café preto antes de morder. 

E tirando um ou outro desentendimento entre meus irmãos mais velhos sobre quem ficaria com os bicos remanescentes, era assim nosso café da manhã, quando eu era um pequeno caçulinha, que mal falava, mas prestava uma atenção danada.

Um momento humilde, mas generoso, na medida do possível. E resistentemente feliz. Por obra e milagre da Dona Mena.

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