Voltaire e o jornalismo no século XXI

17/03/2024 10:46
Voltaire e o jornalismo no século XXI

"Que importa que eu não tenha um cetro? Tenho uma pena!"
                                                   Voltaire (1694-1778)

Entra ano, sai ano, desde o advento do jornalismo online no final dos 1990, debate-se o futuro e o fim da imprensa como a conhecemos há mais de três séculos e, especialmente, após a invenção do rádio e da TV, no século XX.

O domínio das "big techs" na era da internet, a mudança paradigmática do mercado publicitário tradicional, a quebradeira e o encerramento de empresas de mídia por todo o mundo ameaçam o futuro de empregos e a própria atividade jornalística, uma vez acatadas as teorias sobre o seu fim iminente, associado ao descrédito que seus inimigos, invariavelmente poderosos, políticos e autocratas, querem lhe imputar.

Todavia, a releitura de textos de um dos maiores gênios (e jornalistas) que o Ocidente já produziu, funciona como um elixir contra o hipotético ocaso da atividade e um sopro de esperança do que pode e deve ser feito no exercício da profissão onde ele, Voltaire, militou e foi um fenômeno pela amplitude e alcance da sua obra espetacular e profícua.

Nascido François-Marie Arouet, em 22 de novembro de 1694, ou no dia 20 de fevereiro do mesmo ano, de acordo com o próprio e já célebre Voltaire, o parisiense dono de uma cultura enciclopédica foi, antes de tudo, um libertário.

Morto em 30 de maio de 1778, aos 84 anos, a vastidão e diversidade da sua obra, e a influência dela na vida e nos costumes da França, não encontram paralelo até hoje, quase 250 anos após o seu falecimento. 

Filósofo, pensador, dramaturgo, sátiro, cômico, trágico, metafísico, poeta, contista, ensaísta, novelista, romancista, polemista e jornalista, em 1765 foi impresso no Tomo I das Novas Miscelâneas, "Conselhos a um jornalista", título mensurado neste espaço.

Sobre a obra, o autor fez a seguinte nota na própria publicação: "Este texto foi publicado na Holanda, há trinta anos; nunca mais foi impresso: o público julgará se ele merece fazer parte desta coletânea".

Em razão da sua independência intelectual, do teor satírico das suas peças de teatro, das opiniões e influência sobre a população francesa (e europeia), que chegou a consumir mais de 300 mil panfletos assinados por si ou sob pseudônimo, Voltaire foi perseguido como poucos em sua terra natal, tendo de viver expatriado não só no país baixo, mas na Bélgica, Inglaterra, Suíça e Prússia, cujo rei, Frederico II, lhe escreveu em carta:

"Não, por certo, não é um homem só que faz o trabalho prodigioso atribuído ao senhor De Voltaire". Para o monarca, suas ideias e opiniões eram escritas por uma academia inteira. "(...) a obra dessa academia se publica sob o nome de Voltaire".

Jornalista autêntico

Para o jornalista e escritor sergipano Acrísio Tôrres, o "grande escritor" fermentava uma natureza de jornalista e tinha a necessidade de permanente contato com a opinião pública, na "ânsia de orientá-la através da inteligência".

Ainda segundo Tôrres, na difusão de suas ideias de ordem política, social ou literária, por meio das mais de dez mil cartas que escrevera e nas quais abordara os mais diferentes assuntos, o francês agia como um autêntico jornalista, e conseguiu abranger pessoas das mais diversas condições sociais.

O maior

Sobre sua obra e estilo, disse o próprio: "Meu ofício é dizer o que penso". Nascido quase duzentos anos após o multifacetado intelectual e pensador, em "Voltaire", seu conterrâneo André Maurois afirmou sobre si:

"Durante vinte anos desaba sobre a Europa uma chuva de brochuras impressas sob milhares de nomes, interditas, sequestradas, condenadas, renegadas, mas vendidas, lidas, admiradas por todos os cérebros pensantes da época".

Ele prossegue: "(...) a maior parte dessa produção se compõe de panfletos, folhetos e diálogos que fazem de Voltaire o maior jornalista que se conheceu".

Perseguido 

Acusado de publicar dois panfletos satíricos, Voltaire foi preso e mandado para a Bastilha por cerca de um ano, onde dedicou-se a ler Virgílio e Homero. Ao sair, publicou com grande sucesso Oedipe e passou assinar com o nome que escolheu.

Graças a sua coragem pessoal, num século, o XVIII, marcado pela intolerância religiosa levada ao paroxismo, uma verdadeira "tirania espiritual fundada na superstição, no fanatismo, na injustiça e na tolice", entre outras características, ele destacou-se como um dos seus maiores adversários e precursores.  

1º conselho: Sê imparcial

"A publicação periódica na qual pretendes trabalhar pode certamente ter êxito, apesar de já haver muitas dessa espécie. Perguntas como se deve agir para que tal jornal agrade nosso século e a posteridade. Responderei com duas palavras: Sê imparcial. Tens ciência e gosto; se além disso fores justo, predigo-te um sucesso duradouro. (...) A Grécia, que se orgulha de ter gerado Platão, gaba-se também de Anacreonte, e Cícero não nos faz esquecer Catulo".

Se Voltaire era imparcial, decerto tinha lado: o da liberdade de pensar e opinar, daí desagradar a monarquia, a igreja e os déspotas europeus de modo geral.

Os poetas Anacreonte e Catulo e o orador e político Cícero, citados por ele, assinariam embaixo em muitas das suas obras teatrais e escritos sobre pensamentos e ideias libertárias.

Vícios e mercenários

Mas a "matada" que encerra este texto foi um dos últimos conselhos aos interessados na 2ª mais antiga das profissões, que viria em seguida e permanece atualíssimo quase trezentos anos depois:   

"Quisera Deus fosse tão fácil remediar o vício que produz todos os dias tantos escritos mercenários, tantas citações infiéis, tantas mentiras, tantas calúnias com as quais a imprensa inunda a república das letras."

Na segunda metade do século XX e neste primeiro quarto do XXI, a absoluta maioria dos jornalistas rendeu-se às ideias e formulações da esquerda, seja ela corrupta, autoritária ou sectária.

No Brasil, o grande beneficiário deste comportamento servil é o PT e seu xamã, Lula. O que eles não contavam era com o surgimento de outro inimigo deles e do bom jornalismo: o bolsonarismo.

Na era do assassinato de reputações e do "cancelamento" de opinões divergentes de ambos os grupos extremistas, um pouco das lições de Voltaire serve como escudo, antídoto, a melhor arma contra ambos os lados e a ditadura das versões (narrativas), da proliferação de fake news disseminadas pelos dois grupos que expelem ódio e obliteração ao inimigo (e não adversário) e à liberdade de opinar.

Quase três séculos atrás, o francês provou que honra e dignidade precedem qualquer vocação, incluída a de escrever.

Viva Voltaire! Suas ideias e verdades estão vivíssimas.



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