Por Paulo Silber
Noélio Sobrinho tinha 7 anos quando Amaral Neto promoveu o début da pororoca na TV. Depois aquelas imagens foram replicadas em profusão e correram o mundo, ano após ano. Eventualmente, chegavam aos olhos do menino enquanto ele virava adolescente, depois tornava-se rapazinho e transformava-se em surfista.
Sempre que revia as imagens do “Monstro”, Noélio se inquietava, tomado pela febre quixotesca dos antigos cavaleiros que sonhavam em vencer o dragão. Em 1995, a fantasia do passado despertou do sono profundo com inusitada disposição. Fora cutucada, é claro. Com vara curta. Mas somente em 1997, numa expedição brancaleone, fez-se o tempo propício para a realização do velho sonho.
Daquela primeira viagem que inaugurou o surf na pororoca no Pará em 97, até o ano de 2010, quando foi contratado pelos produtores do Multi-Show para orientar o grupo de aventureiros do “Osso Duro”, Noélio já surfara quase 90 pororocas. Tornou-se um especialista.
Certo dia, porém, no meio desse caminho, alguma coisa ficou fora da ordem. Foi no Marajó. Ao abordar a grande onda, em vez de avançar rente ao paredão, a prancha de Noélio Sobrinho embicou na lama. A freada brusca arremessou o corpo do surfista três metros adiante. Projetado para o meio da espumeira, que se alastrava com fúria, triturando o que encontrasse pela frente, ele se levantou capenga. Uma rasteira da correnteza o devolveu ao chão. Com o impulso da pancada, saiu quicando, lacerando os ombros e joelhos. O cotovelo em carne viva.
Acuado, sob tensão e medo, o corpo reagiu por conta própria, enquanto o surfista rodopiava zonzo. Uma injeção de adrenalina invadiu-lhe as veias. As artérias se comprimiram para poupar sangue em caso de cortes profundos. O músculo cardíaco se contraiu. Sob o comando do cérebro, a pulsação rompeu a barreira das 120 batidas. Logo a pressão sistólica pulou para 18. As pupilas se dilataram, como se adivinhassem que o pior estava por vir...
Um muro de lama se ergueu atrás do aventureiro, duas vezes mais alto que ele. A massa compacta de terra, água e detritos, a 40 km por hora, atropelou o surfista, castigando-lhe o abdômen. O impacto de uma batida dessas equivale a uma queda livre de um prédio de dois andares, cerca de 6 metros. A região lombar parecia ter sido espancada sem piedade por Anderson Silva e Junior Cigano - ao mesmo tempo.
Pequenos vasos se romperam espargindo sangue sob a pele. Uma fissura de dois centímetros rasgou o músculo oblíquo externo. A coluna esteve a ponto de ruir. A pressão sobre o nervo ciático provocaria mais tarde uma paralisia nas pernas e um conjunto de sequelas contra as quais Noélio luta até hoje.
Agarrado à prancha, tentando flutuar, subjugado pela Pororoca, o surfista mirou o barranco, a 10 metros, e consumiu o último esforço para alcançá-lo. Em vão.
Uma outra onda gigante saiu do ninho, mais veloz e irritada, e devastou o canal até se encontrar com a primeira, em curso perpendicular, formando um cotovelo. No vértice, um surfista pronto para ser esmagado. Restou ao cérebro o desmaio honroso.
Foram dez segundos de inconsciência. O corpo de Noélio, esculpido nas artes marciais, em horas de academia, no culto à rotina saudável, perdia o verniz do viço, como se a surra da pororoca lhe tivesse arrancado a alma à fórceps - e cuspido o bagaço lixado, seco e sem vida. O Inferno era ali; só faltava aparecer o Diabo.
Mas não foi o Capeta quem surgiu nas profundezas do inconsciente do surfista desenganado. Muito pelo contrário. Metido numa túnica azul celeste, flutuando entre as nuvens, com o rosto cintilante e o breve sorriso da serenidade, Francisco Sobrinho, pai de Noélio, morto havia seis anos, estava ali, diante do filho moído, para recebê-lo na dolorosa experiência da morte.
Noélio chorou sem lágrimas, gritou em silêncio e soluçou inerte, com o corpo já descartado após a sova, grudado em decúbito no barranco. Onde quer que sua consciência estivesse, nas entranhas daquela dimensão que ele desconhecia, suplicou a Deus que não o abandonasse.
- Não me deixe morrer! – implorou, enquanto o filme da vida passava acelerado em flash-back.
A pororoca seguiu seu curso. Carlão, na lancha, tentava sem sucesso se aproximar para o resgate. O mesmo viralata de antes voltou a latir e sentou-se no chão do sítio para lamber as partes. A Natureza, que escarrara pânico nas margens do rio, agora as beijava. O barranco erodido, o solo vergastado, o mangue consumido pela maré indômita – tudo já planejava o renascimento.
Deus também tinha planos para Noélio. O surfista incorporou-se novamente na condição humana. Ainda viu, antes de abrir os olhos, a imagem de Jesus Cristo Ressuscitado. O rosto expressava a tolerância divina, condescendente após o castigo. “Obrigado, meu Deus!”, sussurrou o surfista, já recobrando a consciência depois de se julgar morto.
Após visitar o Inferno, Noélio ganhara o Livramento.
Dono de si novamente, ele se arrastou pela margem ferida de uma fazenda tipicamente marajoara. Não sentia mais as pernas. Foi resgatado por dois peões a cavalo, que o assistiram até a chegada do barco. Lavou a placa de lama que lhe encobria os olhos com a água empoçada das pegadas de búfalos. Pousou as costas no chão molhado e soluçou baixinho.
Que viesse a dor.
*Texto original publicado em “Auêra-Auara – A história do Surf na Pororoca”, de 2015, em parceria com Noélio Sobrinho.
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