Por Paulo Silber
Uma noite, numa brincadeira na casa do Adriano Barroso, ele e o Ailson Braga apostaram que desmanchariam minha suposta frieza e racionalidade, encontrando a canção que me levasse às lágrimas.
“Bobinhos”, eu disse.
Adriano puxou um caixote com a enorme coleção de vinis herdada do Barroso pai. Um conhecido e considerado disq-jóquei dos anos 70. Dono de aparelhagem com repertório respeitado do T1 ao Lapinha. Do Binha ao Le Massiliah. Do Iate Clube ao Pagode Chinês. Um colecionador de marcantes de todos os tempos, de todos os gêneros.
“Pode botar”, estufei o peito.
E eles botaram.
Um desfile de belas canções, capazes de levar às lágrimas uns e outros jeces valadões.
Piaff, Elis, Bethânia, Gal. Fagner. Mercedes Sosa, Chico, Milton, Djavan. Gil. Roberto, Erasmo, Paulinho da Viola. Caetano, Melodia.
Nem Belchior me abalou. Nem Belchior!
Ailson e Adriano eram bons na provocação. Eu me garantia na farsa. Resisti bravamente. Até tocar Dolores Duran.
Aí, fodeu. Tremi:
“Entre, meu bem, por favor
Não deixe o mundo mau te levar outra vez”
Os pervertidos notaram. E veio o massacre. Dylan, Queen, Elvis, Aretha.
“Ben” apagou meu sorriso. “Angélica” me apertou os lábios. Quando puseram Guineto e João Nogueira, eu já estava vulnerável.
Mas foi com “What’s a difference day makes”, covardemente emendada com “I’d rather go blind”, que o Adriano me jogou nas cordas, o safado.
Coube ao Ailson esmagar meu estômago. Impávido como Muhammad, infalível como Bruce e impiedoso como eu também seria:
“Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa no canto
Uma sala e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída
Não doía assim”
Subi os olhos, atônito e desnorteado. Fuzilado pelos olhares famintos dos meus predadores, pendei: “Caralho! Me pegaram!”.
Simulei um ataque de espirros, cobri o rosto e corri pro banheiro. Eu tinha um nome a zerar.
“Ele tá chorando! Ele tá chorando!”, Ailson gritava.
“Sai daí, covarde!”, Adriano mandava.
Eles espancavam a porta:
“Abre, mentiroso!”
“Assume, babaca!”
Eu segurava o trinco enquanto via lágrimas me olhando no espelho. Adriano e Ailson me fustigavam num dueto:
“Naquela mesa tá faltando eeeeeeeele
E a saudade deeeeeeeele
Tá doendo em mim...”
Em seguida:
“Caiu a máscara!
Caiu a máscara!”
É, caiu. Eu nem sabia que “Naquela mesa” era um gatilho. Cansei de cantá-la no banheiro, imitando Nelson Gonçalves, sem nenhuma conexão com o papai. Mas alguma coisa aconteceu naquela noite.
Adriano e Ailson não sabem. Mas foi ali, naquela mesa, nos fundos da Rua do Arame, que chorei a perda do Velho Gama pela primeira vez, 13 anos depois de tê-lo perdido. Um choro que só se completou no consultório da Dra. Ana, minha terapeuta, tempos depois.
“Naquela mesa” foi composta por Sérgio Bittencourt um dia depois da morte do pai, Jacob do Bandolim. Por muito tempo, não tive com meu pai uma conexão tão intensa quanto eles tinham, Sérgio e Jacob. Só fui percebê-la depois que ele morreu. Exatamente um dia antes do meu aniversário de 29 anos. E de repente ela jorrou ali, em soluços.
Tive de me entregar. Saí do banheiro e me debrucei nos ombros dos meus amigos, que choraram comigo depois de me fazer chorar.
Então, confessei a eles o quanto queria ter escrito aquela letra.
Pra quê? Acabou a cumplicidade.
“Tedoidé?”, reagiu o Adriano, me empurrando.
“Vai sonhando, viado!”, ralhou o Ailson.
Seguimos bebendo, sorrindo, chorando e outras coisas mais, enquanto a vitrola servia mais um clássico direto do túnel do tempo, nas brumas daquela madrugada inesquecível:
Et j'ai pleuré, pleuré
oh! j'avais trop de peine
Crônica publicada no portal RedePará, em fevereiro de 2024, em homenagem a Euvaldo Gama, pai do Paulo Silber, que faria 90 anos.