TBTexto: Chama o Sérgio… Parte 1

Todos nós temos um “anjo da guarda”. Acredite ou não. Chame do que quiser. O do Paulo Silber é o Paulo Sérgio. Como se vê nesta crônica dividida em dois capítulos.

20/03/2025 14:00
TBTexto: Chama o Sérgio… Parte 1

Por Paulo Silber*

Minha lembrança mais remota sobre cachorros talvez explique a repulsa recíproca entre mim e o melhor amigo do homem - dos outros homens, só pra deixar bem claro. Meu focinho não vai com a cara deles e vice-versa. Tudo estará bem se continuarmos assim: eu cá, o cão lá, sem que a mão de um possa relar a pata do outro.

A culpa é toda minha, confesso. Eu tinha uns 5 anos quando, brincando na casa do Tio Vidal, em Nilópolis, achei um pequeno caixote de sabão onde se embolavam uns cinco cachorrinhos recém-nascidos. Devo ter pensado: “Que bonitinho. Eles se mexem e gritam!”. E catei a menorzinha.

Na época, sem saber de minhas tendências psicopáticas, crente que aquilo era somente um novo brinquedo trazido pelo papai de suas viagens além-mar... eu brinquei, ora. Agarrei a indefesa cachorrinha com a “delicadeza” que Iago dispensaria a Otelo. Com o desprezo de Escobar pelo amor secreto de Bentinho. Com a soberba do Sargento Tainha a surrar o Recruta Zero. E corri para o quintal pra mostrar a novidade para os adultos. 

Aquela gente estranha e esquisita, movida a cerveja e a Nelson Cavaquinho, entregue ao próprio otimismo, que um dia reinou na Baixada Fluminense.

O sol há de brilhar mais uma vez

A luz há de chegar aos corações

No caminho, joguei a cachorrinha pra cima pra pegar embaixo. Deixei escapulir e tropecei nela. Bati no chão pra tirar a poeira. Fiz tudo que faz um menino amarelo, criado em playground, com o brinquedo novo. Segurei pelo rabinho e girei. Apertei a boquinha da cadelinha como se as minhas mãos fossem uma mordaça de aço. Joguei na parede pra ver se ela quicava. Essas coisas inocentes... 

Entretido, não percebi quando uma cadela furiosa – a distinta genitora do meu adorável brinquedinho – aproximava-se acelerada, desembestada e ensandecida. Ela espargia a baba dos desesperados pelo quintal, exibindo os caninos afiados que haveriam de dilacerar as carnes branquinhas do menino de bochechas vermelhas e coxinhas grossas que torturava sua cria. Só que não.

Antes que a mãe furiosa me alcançasse, o Sérgio, meu irmão, herói e anjo da guarda, já resgatara a cadelinha das perigosas mãos deste projeto de Verdugo, no caso eu, protegendo no próprio colo aquela bichinha, no caso a cadelinha, até que...

- PLAFT!

A primeira onomatopeia a gente nunca esquece. Sem distinguir mocinho e bandido, apenas praticante do instinto animal, quem sabe cutucada por Oxóssi e Santo Antônio, que protegem os bichos, deu-se a tragédia. A indomável e fortalecida cadela-mãe passou por mim chispando e pulou feito uma onça sobre meu irmão, fincando os dentes afiados no nariz dele e derrubando-o sobre uma moita de comigo-ninguém-pode. 

Com o perdão do trocadilho, foi um pega-pra-capar. Uns contiveram a cadela. Outros resgataram o Sérgio. Tio Zé Carlos, meu padrinho, jogou um ponto pra acalmar as crianças:

Ele é pequenininho 

Mora no fundo do mar

Sua madrinha é sereia

Seu padrinho é beira-mar

Tia Don’Ana puxou o terço:

Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia,

vida, doçura e esperança nossa, Salve.

Tia Cotinha levou as mãos pra cima, apertou os olhinhos e mandou um Salmo:

Aquele que habita no esconderijo do Altíssimo...

O resto se jogou foi no samba, mesmo. Mas no final todos saíram inteiros e ecumênicos. A cadela e seus filhotinhos, devidamente encaixotados, foram isolados no fundo do quintal, a salvo de eventuais capetinhas. O Sérgio, levado a tempo pro Hospital da Marinha, voltou pra festa com o sorriso dos heróis, o nariz costurado e meia dúzia de agulhadas antirrábicas na beira do umbigo.

Quanto a mim, protegido pelo colo da Dona Mena e a presunção de inocência das crianças, adormeci escutando aquela música que, anos mais tarde, faria todo o sentido na minha vida.

É o Juízo Final

A história do bem contra o mal

Quero ter olhos pra ver

A maldade desaparecer

Por enquanto, eu estava a salvo. Graças a Deus, eu tinha o Sérgio. Mas essa história não acaba aqui.  

*Trecho da crônica publicada originalmente no livro “Papai, você não tem amigos normais?”, lançado em 2015. Foi revista e ampliada para a coletânea “Papai, por que você não pede o elogio em dinheiro”, a ser lançada este ano.


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