TBTexto: Complexo de Dom Pedro

Paulo Silber confirma neste texto a regra do jornalismo de que “a primeira matéria assinada a gente nunca esquece.”

13/02/2025 17:00
TBTexto: Complexo de Dom Pedro

No livro “A sexta dose e as hipóteses”, a crônica que dá título à obra é a hilária história de um bebum chorão, em cujas farras jorravam lágrimas justamente na sexta dose de uísque. Às vésperas do lançamento, coube a mim entrevistar o autor da obra, jornalista Mário Couto. Sem que eu soubesse, minha pauta era falar com uma inesquecível fonte de sabedoria prestes a se apagar, que marcou o resto da minha vida. A matéria, que seria a última entrevista dele, era para a edição de domingo. Na época, o filé do conteúdo.

Logo eu, um clássico “foca” do impresso, fora chamado para a mesa dos adultos. Eu era apenas um rapaz imberbe nas artimanhas de quem escreve à flor da pele e ainda se corta com a lâmina das palavras. Tinha acabado de migrar da Revisão – na época, o cu da Redação – para o serpentário onde repórteres, editores e chefes se amavam tanto - nem sempre pelos motivos certos.

Era 1986. Mário me acolheu. Mesmo sem a experiência e o conhecimento que tornariam anda mais fértil aquele momento, ele transformou o encontro num delicioso bate-papo. Debilitado e com dificuldade pra falar, ainda assim o Mário me encantou pela inteligência, humor e carisma arrebatadores.

Depois de quase três horas de conversa, saí da casa dele mundiado. Com duas frases martelando a cabeça e um presente que daria à minha incipiente carreira o primeiro atestado de leseira. Viriam outros... Primeiro, as frases:

“Paulo, nunca deixe de ser simples”, ele ensinou, falando com a voz rouca que se esvaía por causa do câncer na garganta. “Nem na vida, nem na escrita”, completou.

Até hoje, tento seguir o conselho, embora já tenha me perdido aqui e ali, confesso, nas artimanhas da boçalidade. Mas não passo a mão na minha cabeça. Vigio-me. Descobri com o tempo, e graças ao Mário, que escrever com simplicidade é como passar no texto a loção do bom gosto com porções de bom senso. Quem complica restringe; quem simplifica expande. Mesmo quando a simplicidade do texto se permite uma bela embalagem, por que não?

A outra frase, pronunciada com o esforço da certeza, que só os apaixonados têm, ainda me move até hoje, juro.

“Espanque o texto, Paulo! Faz e conta que é um bife. Martele. Fica mais gostoso.”

No final da conversa, o generoso Mário Couto, que eu acabara de conhecer e nunca mais veria, entregou-me um envelope recheado e disse, com a empolgação de um menino tomando banho de chuva pela primeira vez:

“Toma pra ti. Isso é que é texto”.

Mário me deu de presente uma coleção de cartas da correspondência que manteve com Dalcídio Jurandir, todas elas manuscritas na bela caligrafia do autor de “Chove nos campos de Cachoeira”. Com aquela letra cursivas, quase desenhada, em seu período de retiro em Cachoeira do Arari, no Marajó, onde forjou sua obra-prima. Eu não tinha a menor ideia de que aquele envelope pardo, puído nas bordas, era um tesouro.

Cheguei à redação com uma bela história pra contar, mas sem saber direito o que fazer e atordoado pela dúvida: será que é certo aceitar presente de um entrevistado. Não consegui jogar às favas os escrúpulos da consciência. Chamei o meu editor, Ronald Junqueiro, e entreguei o pacote a ele. Nunca mais falamos no assunto.

Finalizei a missão, minha primeira matéria assinada, entregando um texto que ensaiava uma pitada de emoção, mas era fraquinho na ousadia.

Ronaldo leu rápido, puxou os óculos pra ponta do nariz, depois me olhou com os olhos verdes por cima das lentes, num misto de carinho e ironia que ele forjava como ninguém:

“Menino, por que tu tens medo de escrever?”, ele fuzilou. Depois completou, feito uma chicotada, já impaciente. “Tu sabes que pode fazer melhor, não sabes?

Engoli o ralho, rasguei as laudas originais e reescrevi tudo. Agora, com emoção e ousadia nada recomendáveis a um mísero “foca”. 

Quando entreguei, ele ainda me deu a última paulada:

“E para com esse negócio de assinar Paulo Silber da Gama Alves! Pra que tanto nome? Tu tens complexo de Dom Pedro?

No domingo seguinte, rebatizado como Paulo Silber, simplesmente, sob as bênçãos do Mário Couto, as chicotadas do Ronald e - descobri depois – graças à indicação da professora Regina Alves, publiquei minha primeira matéria assinada.

Mário Couto, Ronald Junqueiro e Regina Alves permanecem entre as minhas melhores referências. Eles na minha memória; ela, mais sapeca do que nunca, distribuindo o brilho generoso do afeto e da inteligência pelo whatsapp, onde ainda nos esbarramos. Em deliciosas doses. Saboreando infinitas hipóteses. 

*Texto original publicado em 2015, no livro “Papai, você não tem amigos normais?”. Foi revisto e ampliado para compor a edição de “Papai, por que você não pede o elogio em dinheiro?”, a ser lançado no próximo mês de outubro.

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