TBTexto: Eu te amo, mas eu te mato!

Pânico à vista: apneia e possibilidade de respiração boca a boca com o salvador, Humbertinho, da Bahia

23/01/2025 19:00
TBTexto: Eu te amo, mas eu te mato!

Por Paulo Silber

O Humberto Sampaio é um dos caras mais queridos da minha vida. Ocupa a caixa-alta na prateleira dos irmãos que escolhi. É baiano da clara, da gema e da casca do ovo – o que, na maioria das vezes, é uma virtude. É um homem bonito, embora não pratique a belezura. E, sem medo de errar, ouso dizer que, dormindo, o Humbertinho não faz mal a ninguém. 

Culto, bem informado, criado na casca do alho das rádios soteropolitanas, o cara tem de fato uma certa intimidade quando o assunto é música. Baiana e brasileira. É praticamente um HD vivo da MPB. Além de profundo conhecedor do “lá-elismo”, um talento que não tem a menor relevância fora da Bahia. Mas, lá dentro, é quase tão apreciado quanto o 2 de Julho.

Minha missão era receber o Humbertinho no aeroporto de Val-de-Cães e nele introduzir (lá ele!) as primeiras impressões sobre o Pará. Cheguei cedo, o que não é do meu feitio. A bordo de uma camisa de botões com estampa em amarelo. Daquele amarelo que, sob o Sol, dói no fundo do olho. Estávamos no verão amazônico, pô! Estampas e Cerpinhas são muito bem-vindas!

- Me dá duas, que a primeira eu vou tomar gutegute – pedi.

Por mensagem, orientei o Humberto:

- Quando você chegar, procure um branco, narigudo, de camisa estampada amarela, tomando uma cerveja no quiosque.

Na terceira Cerpinha, lá vem o cara. Boina à la Neruda, camisa lisa de botões, bigode cheio, cabelos despenteados e óculos à Jânio Quadros. Tá bom, tá bom: tinha um certo charme de Bogart, mas só um pouquinho.

Estranhei que ele veio reto no meu rumo, sem titubear.

- Silber? – ele arriscou.

- Esse cara sou eu – mandei um chiste. 

- Mas com essa camisa podia ser o Wally Salomão, pai! Antes do avião pousar, eu já tava lhe vendo - sacaneou.

Porra! O cara acabara de chegar na minha terra e já veio fazendo gracinha? Como bom pândego, me apaixonei. 

E dali pra frente não houve um dia em que um não sacaneasse com o outro. Era trote, apelido, pegadinha, 5ª série.

Foram quatro meses juntos, trabalhando pra cacete e rindo pra caralho.

Exceto num dia. Um quase fatídico dia.

Em Parauapebas, botaram a gente pra trabalhar num galpão enorme. Mas ali não tinha uma janela, uma entrada de ar. Insalubre era apelido. E eu tenho rinite, sinusite e o caralhite a quatro. Minhas vias aéreas são mais congestionadas que aeroporto de garimpo. Tenho alergias que ainda nem foram descobertas. Além disso, depois de tanto meter o nariz onde não devia e meter o que não devia no nariz, virei um sequelado.

Certa manhã, entrou na nossa sala uma mulher que parecia espargir dela, a cada passo, generosas lufadas letais. Seu perfume emanava, sabe Deus, um gás sulfídrico. Eu me senti em Auschwitz.

Saí correndo da sala, já espirrando. Mas por todos os lugares onde eu tentava me refugiar, ela já tinha passado. Foi um horror. Uma das piores crises de alergia da minha vida. Eu espirrava 30 vezes, corria pro banheiro, assoava o nariz, fazia assepsia, voltava pra sala, espirrava mais 40.

Os olhos vermelhos, a respiração falhando, o corpo coçando. Humbertinho, amigo e paizão, ao notar meu desespero:

- Véio, você tem que se picar daqui. Vá pra casa. Tome um remédio.

Eu fui. Passei na farmácia, comprei meu Polaramine, cheguei no flat, tomei dois, caí na cama e apaguei.

Quando acordei, umas sete horas depois, vi o Humberto andando feito louco no apartamento, do quarto pra sala, gritando no telefone: 

- Ele tá morrendo, porra! Manda a ambulância agora! 

Só depois a Bela Adormecida ficou sabendo da muvuca. Depois que saí do galpão, Humbertinho, preocupado, ligava de duas em duas horas. Desmaiado, eu não atendia. Na boca da noite, o amigo resolveu conferir o que havia acontecido. 

Encontrou-me deitado na cama, de peito pra cima, imóvel, com as mãos cruzadas, em posição de morto, como sempre durmo... e sem respirar.

Desesperou-se, é claro. Perderia o amigo e, como chefe, ainda seria cúmplice de um acidente de trabalho fatal. 

Enquanto Humbertinho se desesperava, descabelava e esbugalhava os grandes olhos míopes, gritando ao telefone, implorando ajuda, eu despertei da apneia.

Eu podia chamá-lo, tranquilizá-lo, abraçá-lo. Mas alguma coisa - maior que eu, juro – levou-me a fingir. E continuei prendendo a respiração.

Até que, em completo pânico, enquanto media meu pulso, quase aos prantos, Humberto falou ao telefone:

- Venham, pelo amor de Deus! Eu vou tentar um boca-a-boca e...

- Eeeeeepa! – reagi. - A brincadeira acaba aqui! 

Ainda vi aquele rosto distorcido, a testa suada, os cabelos embaralhados e os grandes olhos se fechando, enquanto a boca embigodada, ainda úmida, aproximava-se dos meus lábios.

- Nãaaaao!!! – eu levantei num pulo. – Boca a boca nem pelo caralho! 

E corri, apartamento afora. Enquanto uma voz cada vez mais distante gritava:

- Filho da puta! Eu te amo, mas eu te mato. Filho da puta!


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