Por Paulo Silber
Três medos me atrapalham, não vou mentir. Medo de cachorro grande, manso ou feroz. Medo de barata, de qualquer tamanho e envergadura. E medo de dentista. Este, porém, estou enfrentando bravamente.
Comecei o que será um longo tratamento na clínica EquipeDente. Não poderia ser curto. Havia 14 anos que eu não pisava no mesmo chão que um dentista. Desde que o Dr. Carlos extraiu um molar e colocou uma coroa provisória em um dos meus incisivos – mas o procedimento, infelizmente, levou meu sorriso, feito a Rita da música.
Culpa minha, que não segui as regras de pós-cirurgia e tive hemorragia por quase uma semana. Fui obrigado a me comportar, porque o sangue deixava um gosto horrível na cerveja...
Esse transtorno, somado ao barulho ameaçador da broca, o fantasma do tratamento de canal e a sensação de vulnerabilidade ao sentar naquela cadeira e abrir a boca para mãos alheias, tudo isso contribuiu para meu trauma. Passada a hemorragia, resgatei o sabor da cerveja, promovi o provisório a permanente e decidi: dentista nunca mais!
Até uma fatídica noite, no final de 2023, quando o bom e velho provisório, um tanto quanto debilitado, espatifou-se num pedaço de pizza duro de roer, impondo uma lacuna em meu sorriso.
Um sorriso que, no passado, muito bem passado, ganhou um inesperado elogio da cantora Alcione, durante uma entrevista pra TV Cultura na Feira dos Municípios, em Belém.
- Branquinho, branquinho. Esse sorriso tá mexendo com a Marrom...
Mas agora, sem permanente nem provisório e sorrindo com a boca fechada, só me restou enfrentar o medo. Já comecei a tremer quando a atendente da clínica me deu bom dia.
Na primeira consulta, o carisma do Dr. Marcelo foi me acalmando. Esse cara podia fazer aquele antigo comercial da Kolynos na TV, em que um jovem mergulhava na piscina e emergia dizendo: “Aahhhh!”.
Não é só o sorriso. Gentil, bom de conversa, generoso, o Dr. Marcelo me lembrou o jornalista Alex Solnik, que conheci na redação da revista Interview. Nosso amigo Palmério Dória definiu o Alex numa frase sacana:
- Com esse papo, ele come até o Maguila...
Bom, o Maguila escapou, mas a Doris Giese não. Um dia, Alex foi entrevistá-la e estão juntos até hoje.
Pra minha sorte, e para a felicidade desta crônica, o Dr. Marcelo é muito bem casado e, graças a Deus, eu tenho uma negra chamada Didi. Tratamento planejado, acertamos o pagamento em suaves prestações e começaram as consultas. A cada procedimento, um especialista.
O jovem Dr. Ruan, que trocou o futebol pela Odontologia, tirou de letra minha coleção de tártaros, que de tão antigos já estavam virando quelônios. Encarregada das restaurações, a Dra. Rebeca, muito bonita, focada e competente, recebeu-me com simpatia, mas, percebendo que sou conversador, tratou de me enquadrar na cadeira:
- Sente-se e abra a boca!
E ainda ralhou comigo três vezes, durante o procedimento:
- Não fecha!
Foi quando eu cochilei e acabei mordendo os dedos dela. Quem é que cochila durante uma obturação?
A cada etapa, eu relaxava mais. Até cair na cadeira do Dr. Felipe. Um cara sério e bonitão. Minha pressão subiu. Ele faria duas extrações e os implantes propriamente ditos. Eu não parava de me lembrar daquela clássica cena de "A Pequena Loja dos Horrores", o filme em que o dentista sádico tinha um paciente masoquista.
Bobagem, deu tudo certo. O Dr. Felipe foi rápido e preciso, eliminando meu medo pela raiz.
Finalmente, chegou o dia de trocar a coroa perdida e restaurar a alegria do sorriso largo. Será que ainda tenho chances com a Marrom? A missão caiu nas mãos do Dr. Renato, especialista em próteses dentárias. Um dentista experiente. Muito experiente mesmo.
Tão experiente, que me veio à cabeça uma piada: "Será que o CRO dele foi assinado pela própria Santa Apolônia?” A padroeira dos dentistas viveu na Alexandria no ano de 249. Piada de mau gosto, preconceituosa, etarista. Melhor ficar calado.
Foi aí que veio a grande surpresa. Depois de passar uma hora e meia nas mãos do Dr. Renato, saí da clínica com a gengiva dolorida, mas dando gargalhadas deliciosas no meio da rua. O dentista, além ser muito competente, bom de prosa e didático, passou a maior parte da consulta cantando. Sim, cantando. Como se estivesse dirigindo tranquilamente, numa infinita highway.
Enquanto manipulava as ferramentas e me explicava o procedimento passo a passo, ele cantava. Mandou Chico, Paulinho da Viola, Maria Bethânia e até Mercedes Sosa. Belchior, Djavan e Fagner. Não errou uma letra e o repertório cabe certinho na minha playlist.
Mas foi em Vaca Profana, do Caetano, que o Dr. Renato se empolgou. Com a broca na mão, segurando-a como se fosse um microfone, à altura da própria boca, ele fechou os olhos e caprichou no falsete:
- Êeeeeeeeeee! Vaca de divinas teeetas...
Eu cuspi o sugador e caí na gargalhada. Rimos juntos. Foi uma cena engraçada naquelas circunstâncias. Atiçou ainda mais minha simpatia por esse cara. Virei fã do Dr. Renato. Do médico e do cantor.
Agora, quando ele me atende, a gente leva alguns minutos falando sobre o repertório daquela sessão.
- Tem o pessoal de Minas, né, doutor? – sugiro.
Ele faz uma pré:
- Quando entrar setembro...
Depois de tudo combinado, me acomodo na cadeira, ele pega a broca e solta voz. Faço o backing vocal em pensamento. De vez em quando, sai um gemido melódico: "Hummm umhummm ummm...".
Não é dor. É felicidade por conhecer esse cara incrível. Ultimamente, nem tenho lembrado daquele antigo medo. Só fico triste, às vezes, quando vou marcar a próxima consulta e nem tudo sai como eu queria.
- É com o Dr. Cantor? - pergunto.
A atendente responde:
- Não, seu Silber. Desta vez, não.
Ok, me conformo. E saio da clínica cantarolando Raul:
- Tente outra vez...
*Texto original publicada na REDEPARÁ em março de 2024.