Por Paulo Silber
Amenahide subiu a Colina em silêncio, como sempre fazia naqueles passeios sem escolta, destinados à reflexão. Parou a 10 metros da Piazza di Santa Marta e olhou para o céu. Depois, observou os raios de Sol se decompondo, como um arco-íris fatiado, nas quinas do Portão Petriano. Seguiu sem pressa até a calçada do Palazzo del Governatorato. Aspirou com prazer o aroma dos limoeiros. O suave cheiro dos cítricos cavalgava na corrente de ar desde os jardins do mosteiro até alcançar o Grande Palácio.
Amenahide estava prestes a tomar a decisão mais difícil de uma vida recheada de revoluções.
Antes de entrar, girou em torno de si mesma, de cabeça erguida, para observar o azul cintilante daquela tarde. Desceu o olhar em espiral, movendo o corpo feito um compasso, para admirar a beleza daquele lugar santo. A luz difusa refletida nos prédios seculares do Vaticano cristalizava, naquele cenário, a aparência de um afresco de Rafael.
Amenahide fechou os olhos e pediu a Deus que a iluminasse de sabedoria, como iluminara Sânzio de talento séculos atrás.
Os passos precisos e miúdos; os delicados múleos carmins, feitos em cetim, escondidos sob a longa indumentária que lambia o mármore; a postura suave, mas altiva, da jovem bailarina do passado – tudo dava a impressão de que Amenahide flutuava pelos corredores. Assimilara esse modo de andar desde criança, quando brincava nas escadarias do Colégio Gentil Bittencourt. Desde os 8 anos, sempre corria com elegância, balançando os laços da maria-chiquinha em perfeita sincronia, como se fossem asas, inspirada nos versos feitos pelo pai:
“Desafia o que impede.
Enfrenta a quem emperra
o teu caminho.
Vai, vence, voa, ascende.
Assim no Céu como na Terra,
és passarinho...”
Subiu ao Palácio Apostólico, cumprimentando com sorrisos discretos as irmãs beneditinas que trabalham o prédio. Alcançou o appartamento nobile pelo acesso privado. Sozinha no quarto, despiu a casula verde que paramentava a batina de um branco impecável. O momento delicado e extraordinarius exigiria uma aparição pública e era preciso vestir-se como mandam o figurino e a tradição.
Libertou-se da casula de seda, da sobrepeliz predileta em linho, desatou o cordão da cintura e retirou a faixa branca com brasão papal. Banhou-se sem cerimônia, fazendo apenas uma concessão à frivolidade durante a higiene: um shampoo especial importado de sua terra natal, na Amazônia. Depois incorporou todos os simbolismos das vestes oficiais: a bata branca com 33 botões, a estola bordada em dourado, a mozeta vermelha sobre os ombros e o pálio de lã. Até o final do dia, tudo viraria pó.
Avessa às vaidades humanas, Amenahide odiava os trajes obrigatórios, mas resignava-se. Se não se pode vencer sempre, que se reserve energia para causae majores. Grandes batalhas, como a que estava prestes a eclodir.
Antes de deixar o aposento, pressionou suavemente a ponta do pallium entre o indicador e o polegar. Um ritual íntimo, quase subversivo, no conjunto de liturgias. Uma anuência à superstição sob a sombra da crença maior. Curtiu a textura do manto entre os dedos, antes de elevar a mesma mão ao rosto para o sinal da cruz. Notou o contraste entre a pele, ressequida, e a maciez da lã.
Amenahide ainda parou por dois minutos junto à porta do escritório contíguo à biblioteca. Lá dentro, um homem pequenino, com pernas mais longas que o tronco, movia-se freneticamente diante da imagem em 3D de São Miguel Arcanjo, líder dos exércitos celestiais na religião católica. Presente de um artista pop que o caracterizara como uma espécie de Michael Jackson iluminado.
A religiosa postou-se diante do leitor labial para dizer calada a senha que lhe dava acesso a todos os mais de 300 compartimentos do palácio. Titubeou por um segundo, depois lembrou-se do poema escrito pelo pai havia décadas: “És passarinho...”. Então, diante do dispositivo, moveu os lábios com doçura e firmeza, mas em silêncio, formando a palavra secreta: “Pissica”.
O equipamento reconheceu a senha. O sensor de sinapses aceitou a frequência do pensamento. A grande porta de aço revestida de madeira sintética com aroma artificial de manga dividiu-se ao meio, abrindo passagem para um grande salão, em cujas janelas pendurava-se a sacada com vista para a Praça de São Pedro. Amenahide ordenou ao camerlengo, que a esperava:
- Está na hora!
O cardeal primeiro ajoelhou-se. Depois ergueu-se para unir seu próprio polegar ao de sua líder, recebendo o memorando sensorial que logo estaria na boca do povo. Descarregou a mensagem eletrônica no decodificador portátil, que mantinha sempre à sua órbita. Abriu-se no ar um holograma com texto em letras góticas, do tamanho de uma folha de papel ofício. No centro do documento, lia-se apenas:
“SEDE VACANTE”
O camerlengo leu e releu a ordem. Olhou com lágrimas para os olhos de Amenahide. Sem dizer, ele suplicava para que ela mudasse de ideia. Mas a decisão estava tomada.
- Vá Dom George Jetson - Amenahide ordenou com firmeza, mas sem perder a ternura jamais. – Anuncie minha renúncia. Urbi et orbi.
Dito e feito. A primeira mulher a ocupar o trono de São Pedro aceitara o sacrifício da renúncia para pacificar o rebanho. Grande líder da Revolução Cristã-Ecumênica, ela conseguira modernizar e unir milhões de fiéis numa convivência pacífica até então impensável. Tornou-se líder, a um só tempo, dos apostólicos romanos, ortodoxos orientais e bizantinos, batistas, luteranos, presbiterianos, pentecostais, um feito que durara 33 anos.
Abdicava agora, para pôr fim a um período de intolerância que já se arrastava por um ano, desde que a miliciana Gaby Tremolare passou a ameaçar a paz no Vaticano com uma campanha insidiosa pelas redes sociais, que alcançara milhões de likes e compartilhamentos no mundo inteiro, compartilhada freneticamente por um exército de neopentecostais.
Naquela manhã, a papisa Amenahide, primeira e única, ocupou a sacada do Vaticano para, em vez do Angelus, personificar seu próprio milagre. Subiu dois degraus na sacada. Olhou para a multidão delirante. Ergueu os olhos buscando o perdão do Pai. E mandou uma Ave-Maria num latim impecável:
- Ave Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Iesus.
Naquele momento, abriu-se um grande foco de luz, varando um agrupamento de nuvens de chuva que atormentavam o céu. A luminosidade engoliu a papisa e dissolveu as vestes papais, deixando-a nua em pelo.
O som de trombetas penetrou os ouvidos da multidão, um som estéreo, abrangente, com impedância nunca ouvida antes. Milhões de pessoas sideradas por aquela visão e pela frequência viram com os olhos que a terra há de comer quando das costas de Amenahide surgiram duas grandes asas, que se abriram num balé arrebatador.
Lentamente, Amenahide Iluminada levantou voo em direção ao Todo-Poderoso. Confirmava-se, diante dos mais de 190 países do mundo, a profecia do falecido pai da papisa, agora elevada à condição de anjo:
“Desafia o que impede.
Enfrenta a quem emperra
o teu caminho.
Vai, vence, voa, ascende.
Assim no Céu como na Terra,
és passarinho...”