A prisão dos suspeitos pelo assassinato de Marielle Franco e a defesa dos Tribunais de Contas

27/03/2024 18:32
A prisão dos suspeitos pelo assassinato de Marielle Franco e a defesa dos Tribunais de Contas

Domingo, 24 de março de 2024, seis anos e dez dias após o assassinato da vereadora Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Gomes, na cidade do Rio de Janeiro, finalmente o Brasil acordou com a notícia da operação “Murder Inc.”, da Polícia Federal (PF), que prendeu os acusados de mandar matar a parlamentar carioca do PSOL.

Chiquinho e Domingos Brazão, respectivamente (ainda) deputado federal pelo Rio de Janeiro e conselheiro do Tribunal de Contas daquele estado, o TCE-RJ, foram presos após mais de cinco anos de já terem sido citados como suspeitos de serem os mandantes dos crimes.

Mas a revelação ainda mais estarrecedora foi o nome e cargo do terceiro acusado de ser um dos carrascos de Marielle: o chefe da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, delegado Rivaldo Barbosa, responsável pelas investigações, preso acusado de estar envolvido no planejamento do crime e, na esteira, na obstrução das investigações.

Requintes de crueldade

O envolvimento do delegado que atendeu a família da vereadora, o então deputado Marcelo Freixo, entre outros, horas após o seu assassinato, em 2018, ficou claro na decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF.

Em seu despacho justificando a prisão do deputado (que tem prerrogativa de foro), o conselheiro do TCE-RJ e Barbosa, Moraes cita o delegado como quem teria planejado “meticulosamente” o crime, tendo, inclusive, imposto uma condição: para manter as investigações sob controle, a execução não poderia ser na frente ou nos arredores do Palácio Pedro Ernesto, a sede da Câmara de Vereadores.

Sobre a exigência, escreveu o ministro: “(...) tem fundamento na necessidade de se afastar outros órgãos, sobretudo federais, da persecução do crime em comento, de modo a garantir que todas as vicissitudes da investigação fossem manobradas por Rivaldo, então supervisor de todas as investigações de homicídios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro”.

Motivações 

Para Andrei Rodrigues, atual diretor-geral da Polícia Federal, as motivações do duplo assassinato estão ligadas a interesses dos Brazão quanto à ocupação, grilagem de áreas e terrenos na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro e à atuação de Marielle contrária a esses interesses enquanto vereadora do município.

Domingos Brazão

Ainda conselheiro do TCE-RJ, Domingos Brazão, 58 anos, era conhecido até as últimas revelações como o chefe de um grupo político atuante na zona oeste, considerada a região berço das milícias cariocas.

Deputado estadual por cinco mandatos, chegou a ser afastado do cargo de conselheiro acusado de corrupção, tendo retornado após decisão judicial. Além de envolvimento com milícias, ele já respondeu à acusações por improbidade administrativa, fraude, envolvimento na “máfia dos combustíveis” e compra de votos.

Trapaça

Numa trapaça do destino, como diria Elio Gaspari, além do algoz que prometia a resolução do crime para a família e a sociedade enquanto estava por trás da trama que o planejou, o delegado Barbosa, e do atual parlamentar federal, Chiquinho Brazão, mais uma vez os Tribunais de Contas têm o nome de um dos seus membros envolvido num caso de polícia: um duplo assassinato sem chances de defesa.

Os TCs e a falência ética e moral do RJ

Para quem conhece minimamente a respeito das competências constitucionais dos Tribunais de Contas, com um “currículo” desses, Domingos Brazão, um dos três acusados de ser mandante do crime, jamais poderia, sequer, ser mencionado para a função.

Criado oficialmente em 1893, durante a gestão do presidente Floriano Peixoto, o Tribunal de Contas da União (TCU) foi formulado três anos antes por decreto, em 7 de novembro de 1890, numa iniciativa do então ministro da Fazenda, Rui Barbosa (considerado o seu patrono), sob os princípios da autonomia, fiscalização, julgamento e vigilância.

Serzedello 

Coube ao militar e político Inocêncio Serzedello Corrêa, a sua instalação definitiva. A iniciativa do paraense faz dele, ao lado do baiano, também conhecido como a “Águia de Haia”, um dos dois nomes mais importantes no âmbito do controle externo no país, quanto à sua existência, desde aquele final do século XIX até hoje.

Não à toa, Rui Barbosa e Serzedello Corrêa marcaram época, sendo considerados estadistas dotados de inteligência e cultura privilegiadas, espírito público, honorabilidade pessoais e dedicação plena à vida pública do país, no qual deixaram marcas indeléveis em suas trajetórias, se constituindo em duas das mais gloriosas páginas da história republicana e da vida nacional. 

Alto preço

Não é de hoje que os Tribunais de Contas pagam um alto preço pela sua missão constitucional ser confundida com traços e decisões de seus membros que conspurcam a sua nobre finalidade de zelar pela destinação dos recursos públicos advindos do pagamento de impostos pelos cidadãos.

Quando Domingos Brazão foi afastado das suas funções, em 2017, outros quatro conselheiros também o foram. Detalhe: de um total de sete.

Tanto no TCU quanto nos TCs estaduais encontram-se alguns dos mais bem preparados servidores públicos do Brasil. Sejam eles membros, substitutos ou integrantes do seu corpo técnico.

Há trabalhos de excelência a serviço e à disposição da nação realizados por esses tribunais. Eles se traduzem em medidas cautelares, estudos técnicos, diagnósticos, pareceres; um verdadeiro raio-x das áreas mais essenciais, àquelas consideradas estratégicas para o desenvolvimento nacional. Todas essas informações podem ser disponibilizadas pelos tribunais.

Muito se fala da maneira de escolha prevista na Constituição Federal como uma das razões para o desvirtuamento das funções e missões dos TCs, mas este está longe de ser o seu maior problema.

Da área técnica aos representantes dos poderes legislativo e executivo, ali encontra-se excelência no trabalho da absoluta maioria dos seus integrantes.

Ao cabo e ao fim, generalizar-se ou demonizar-se toda uma instituição criada para zelar pelo patrimônio e a destinação dos recursos públicos por conta dos malfeitos de A ou B, não resolve nada, pelo contrário, adia-se o que deve ser feito, que é os TCs serem efetivos como lhes garante a Constituição.

Faróis

Uma instituição pensada por um Rui Barbosa e implantada por um Serzedello Corrêa não pode ser coadjuvante ou dispensável no arcabouço institucional de um país. Sua importância também deve ser medida por esses verdadeiros exemplos de homens e servidores públicos.

Ambos entre os precursores da República, ocupantes de alguns dos postos mais altos e sobre os quais se depositam até hoje as maiores deferências e reconhecimento pelas respectivas atuações excepcionais na defesa e para o progresso do regime republicano.  

Com esses verdadeiros faróis de exemplo, cada membro dos TCs brasileiros deve entender o tamanho da sua responsabilidade. O mesmo deve valer para aqueles a quem cabe escolher quem vai representar estados, municípios e a União em fórum tão exclusivo, importante, egrégio.

Pergunta

A gravidade e delicadeza do tema provocam a discussão se é possível separar o joio do trigo, ou seja, o sistema Tribunais de Contas e o caso Marielle, quando um dos acusados pelo crime é membro de um dos TCs brasileiros, e cujo cargo lhe confere o status de vitaliciedade.

Resposta

Envolto em mais este desgaste diante da opinião pública, desta feita com repercussão mundial, a mensagem que deve espraiar-se é a de que se pode ou se deve até cortar na própria carne quando imperativo ou vital, mas os TCs não devem ter sua premência questionada por este crime, tampouco pelo do motorista ou qualquer outro cometido por quem quer que seja pertencente ao seu quadro. Afinal, institucionalmente, o sistema é impessoal. 

Dorrit, Júlio César e os “idos de março”

Esposa do citado Elio Gaspari, a não menos brilhante Dorrit Harazim lembra, em sua coluna de O Globo do último domingo, 24, que ainda estamos sob a influência dos “idos de março” e a profecia ouvida pelo imperador Júlio César na data do seu assassinato, 44 a.C., com 23 facadas, naquele 15 de março, 2068 anos atrás, portanto, completados sexta-feira retrasada.

Curiosidade

No calendário daqueles tempos, os dias 13, 14 ou 15 de cada mês, a depender de qual, eram chamados de “idos”, no caso em tela, de “março”. Como se vê, até domingo, todo cuidado é pouco.

Ainda assim, apesar de todas essas chagas e tragédias, o Rio de Janeiro sempre continuará lindo.

E diferente do que escreveu a jornalista sobre o clima em Roma, a Cidade Eterna, na data do assassinato do imperador romano, este ano, o pôr-do-sol de outono carioca vai estar lá, impávido e brilhante, ao final de cada tarde, na mal tratada Cidade Maravilhosa, ainda mais esplendoroso durante a estação que ora se inicia.

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